Theresa Catharina de Góes Campos

 

 

 
Bashô por Nelson Ascher

De: Kakinet

Date: sáb., 1 de jul. de 2023

Subject: [Kigo-BR] Bashô por Nelson Ascher

Haicaístas:

Recuperei este velho recorte de jornal* de 2004 com um artigo do tradutor Nelson Ascher sobre haicai e, especialmente, sobre Bashô.Muito interessantes as traduções de cinco haicais famosos, metrificadas no padrão grave, ou sistema antigo, que conta todas as sílabas do verso. Contrariamente, o padrão agudo, ou sistema moderno, mais conhecido e ensinado na atualidade, considera a contagem apenas até a tônica.

Nossos atuais pentassílabo e heptassílabo, usados no haicai, seriam respectivamente hexassílabo e octossílabo na contagem antiga. Optando pelo sistema antigo, o tradutor construiu versos de cinco e sete sílabas (descontadas as elisões) que seriam considerados quadrissílabos e hexassílabos pelo padrão moderno.

Quando se fala de sistemas de contagem, é importante notar que a poesia, através de seus versos, é sempre a mesma. Muda apenas uma convenção. Redondilhas maiores ou menores são sempre as mesmas, seja pelo sistema antigo (seis e oito sílabas) ou novo (cinco e sete sílabas).

Desde que o haicai chegou ao Brasil, poetas têm escrito seus versos com duas redondilhas menores e uma maior entre elas, ou seja, 5-7-5 pelo sistema novo, pretensamente emulando a contagem de 5-7-5 “onji” ou sons do japonês. Entretanto, pelo sistema antigo, a contagem seria 6-8-6.

Ao contar todas as sílabas, o tradutor estranhamente logrou encontrar uma afinidade entre a versificação em língua japonesa (que conta todas as sílabas) e a versificação portuguesa, ainda que apelando a um sistema arcaico de metrificação. Não é pouco, dada a acusação às vezes feita às traduções ao português feitas em 5-7-5, de serem muito prolixas em comparação ao conciso japonês.

Dissemos anteriormente que o sistema antigo conta todas as sílabas. Na verdade, isso é apenas força de expressão, pois, no português, a maioria das palavras é paroxítona. Sendo assim, quando o sistema antigo conta todas as sílabas, na verdade está considerando até a tônica e daí somando a átona final.

No sistema antigo, quando é o caso do verso terminar com uma oxítona, soma-se mais uma sílaba inexistente. Já no caso de uma proparoxítona, é a vez de subtrair uma das duas que sobram após a tônica.Ao passar para o sistema novo, basta contar até a tônica em qualquer caso, sem mais aritmética. Desconfio que isso seja didaticamente mais simples.

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DEZESSETE SÍLABAS

Nelson Ascher

Há discussões que, graças à imprecisão dos conceitos, nunca terminam. A oposição entre Ocidente e Oriente durante os últimos cem anos é uma dessas. Embora não se ignorasse que civilizações complexas existiam em ambos os extremos da Eurásia, além de se exagerarem seus contrastes, às vezes negativamente (o dinamismo europeu vs. a inércia oriental), às vezes positivamente (a Europa materialista vs. a Ásia espiritual), teorizou-se que cada lado pensava e sentia de modo totalmente diverso.

A historiografia contemporânea, no entanto, que sublinha, por um lado, as semelhanças de fundo entre as civilizações sedentárias de leste e oeste, enfatiza, por outro, as diferenças entre estas e as culturas nômades (em especial as da Ásia central). Hunos, mongóis e os povos túrquicos se deslocaram milênios a fio pela estepe, ameaçando (e interligando) tanto a China como o Império Romano e seus sucessores. Se os ocidentais estudam há tempo o extremo Oriente e lhe apreciam a cultura, são os nômades, mesmo os posteriormente sedentarizados, que continuam enigmáticos.

A imprecisão conceitual se revela quando se recorda que a nação mais afastada do Mediterrâneo, o Japão, não deixa de ser, em muitos aspectos, bem ocidental. A geografia que determinou muito de sua história tem menos a ver com essa distância do que com a insularidade que fez do arquipélago em questão algo não raro mais parecido com as Ilhas Britânicas do que com a China. Não é à toa que Akira Kurosawa admirava Shakespeare e o adaptou com genialidade e congenialidade.

Entre as provas de tais "afinidades eletivas" se encontram a "ética protestante de trabalho", que permitiu aos japoneses se tornarem a segunda principal potência capitalista, e a influência que, desde os primórdios da modernidade literária, sua poesia exerceu sobre os autores e leitores estrangeiros. Afinal, desde que, oitocentos anos atrás, os italianos inventaram o soneto, nenhuma forma fixa conquistou tantos seguidores no planeta inteiro quanto o haicai.

O haicai tem uma longa trajetória. Tão logo começou a ser registrada por escrito, no século 8, a poesia nipônica já mostrava sua predileção pela alternância de versos não rimados de cinco e sete sílabas. O "tanka", com cinco linhas de respectivamente 5/7/ 5/ 7/7 sílabas, que principiara como resumo final de composições longas ("chôka"), ganhou autonomia e se estabeleceu enquanto a principal forma lírica do Japão medieval. Depois, devido ao costume de amigos reunidos escreverem, numa espécie de desafio, sequências de "tanka", surgiu o "renga" (poesia encadeada), para a qual um escrevia três linhas, o seguinte duas e assim por diante. O terceto inicial se chamava "hokku" e, caso o tom fosse jocoso, dava-se ao "renga" o nome de "haikai". No final da era Muromachi (1338-1603), marcada pelas incessantes guerras civis, o "hokku" alcançou sua independência e virou o gênero favorito do período Edo (nome antigo de Tóquio, 1603-1868). Após a restauração Meiji (1868), o grande renovador Massaoka Shiki (1867-1902), juntando a primeira metade da palavra "haikai" com a segunda de "hokku", batizou a forma de "haiku".

Quem a consolidara, porém, fora seu grande praticante, Matsuo Bashô (1644-94), o "mestre da cabana da bananeira" (Bashô é o nome local da planta). Embora seus "haikus" (veja destaque) transitem do sério ao irreverente, e o que muitos dizem soe óbvio, ele embutiu, nas escassas dezessete sílabas de cada qual, surpresas, refinamentos e uma visão de mundo derivada do budismo zen. Este, uma vertente mais anárquica e individualista da doutrina criada na Índia, exaltava a meditação ("zen" em japonês, "cha'an" em chinês, "dhyana" em sânscrito) como caminho para se atingir a iluminação, "satori" (mais especificamente: o florescimento súbito da compreensão).

Apesar da aparente simplicidade, o "haiku" obedece a regras exigentes, como a obrigatoriedade de uma referência à estação do ano ("kigo"). Ainda assim, o fascínio que exerce decorre de elementos que sempre o caracterizaram: a observação minuciosa, a percepção instantânea, seu apego ao que há de mais trivial ou cotidiano e, sobretudo, sua maneira de entremostrar emoções não pela confissão direta, mas sim através de coisas e seres vistos, ouvidos, sentidos (e que T.S. Eliot definira em outro contexto como "correlato objetivo"). Quando os tradutores não interpõem suas excentricidades, rimas fáceis e sintaxe banal ou retorcida entre o leitor e os melhores "haikus", estes patenteiam que alguns poetas orientais sabiam meio milênio atrás de coisas que seus colegas ocidentais não descobriram antes do século 20.

Matsuo Bashô

aves aguardam
o inverno em pranto e peixes
de olhos em água

nenhum som salvo
o das cigarras quebra o
silêncio e rochas

reduz-se à relva
de estio quanto guerreiros
sepultos sonhem

como é que o choro
que a aranha chora ao vento
de outono soa

águas paradas
mal pula a rã se inundam
de ondas sonoras



*ASCHER, Nelson. Dezessete sílabas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 jan. 2004. Ilustrada, p. E8.



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Abraços,

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Edson Iura

kakinet@gmail.com

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