Theresa Catharina de Góes Campos

 

A COMÉDIA DO PODER

Em A Comédia do Poder, Claude Chabrol realiza um estudo um tanto ambíguo como é de seu estilo, de ordem comportamental, sobre as implicações do exercício do poder sobre a vida das pessoas que se deixam embriagar pela ilusória sensação de que estão acima de todos os demais e, diante disso, são levadas a cometer todo tipo de desvario.

É um filme que trata da violência com que se dão as relações do poder sob o aspecto do conflito que se estabelece entre o público e o privado, o político e o psicológico. Embora tenha sido realizado com base num escândalo político-financeiro ocorrido na França durante o governo Chirac, nos anos noventa – o qual teve como protagonistas, de um lado, a empresa petrolífera Elf Aquitaine e, do outro, a juíza Eva Joly -, o tema, portanto, não abrange apenas, como muitos querem fazer crer, a questão da corrupção, inerente ao poder.

Chabrol, que vem dos tempos da Nouvelle Vague, fustiga, sim, as pessoas que participam da comédia do poder que, vistas de fora, da distância, são tragicômicas, ridículas, cínicas, despudoradas, como nunca houve tantos exemplares no cenário nacional, como há atualmente. E a figura que ele elege para mostrar como é maléfica a embriaguez do poder é a de uma juíza, Jeanne Charmant Killman (Isabelle Huppert), que, imbuída do que se chama por aqui de "juizite aguda", sem perceber que ela não tem poder algum, mas apenas o que lhe é outorgado, acaba por destruir sua vida privada.

Na verdade o roteiro – assinado por Claude Chabrol e Odile Berski – estabelece um paralelo entre a ridícula juíza e o corrupto presidente de uma empresa pública, Hameau (François Berliand), mostrando como ambos, embriagados pelo poder, se consomem cada vez mais e decepcionam seus familiares. Ela, sem origem, ascendeu socialmente, casando-se com o herdeiro de um laboratório, Philippe (Robin Renucci), que, por sua vez, se ressente do segundo plano que ocupa na vida dela, ansiosa por se projetar na profissão. O empresário, casado, ao ocupar o cargo de presidente da multinacional de petróleo, se deixa seduzir por uma assistente, que o leva a desviar dinheiro público através de cartões de crédito para satisfazer os seus caprichos e desejos.

Esse paralelismo entre os dois personagens se torna por assim dizer o leitmotiv da direção de Chabrol que opõe o tribunal (espaço público) ao apartamento (espaço privado) mesmo porque a embriaguez do poder leva alguns a ter a errônea compreensão – o que acontece muito entre nós – de que um é a extensão do outro. Há uma cena por sinal bastante elucidativa nesse sentido, na qual a juíza, depois de ir às vias de fato com o marido, sem ter para onde escapulir, pede ao segurança, de plantão em seu apartamento, que a leve para o seu gabinete no tribunal, não dando a menor importância ao fato de o relógio indicar que são quatro horas da madrugada.

Se assim o tribunal é o espaço do poder, para questioná-lo ou, melhor, para transmitir a idéia de que é ilusório, Chabrol compõe seus planos – auxiliado pela excelente fotografia do espanhol Eduardo Serra – a partir da escada dos fundos, que se torna peça fundamental para a compreensão da mise en scène, caracterizada ainda por cortes rápidos e diálogos precisos e sutis, além de um comentário musical de efeito, assinado por Mathieu Chabrol, já que a família está toda reunida no filme.

A "comédia", na verdade, se inicia por um plano magnífico tomado no espaço do poder de Hameau, ou seja, no seu gabinete de presidente da empresa petrolífera, no qual, enquanto se coça à causa de uma doença alérgica, é bajulado por várias atendentes que agendam seus próximos compromissos. Nesse afazer, elas, extremamente aderentes e solícitas ao patrão, o acompanham até o elevador, que vai  deixá-lo no saguão do edifício, onde, para sua surpresa, o aguardam agentes policiais que o algemam e o levam à presença da juíza de instrução, sequiosa de poder e de projeção na mídia, Jeanne Charmant Killman.

Mas Hameau só vai ter noção precisa de que o poder é ilusório, quando, mais tarde, ao deixar a prisão, percebe que ninguém o aguarda na calçada ao contrário do que ocorre com outros ex-detentos, que saem ao mesmo tempo em  que ele, recebidos por afetuosos abraços de parentes, amantes ou amigos. A juíza, entretanto, não vai tomar conhecimento disso. A sua pompa não lhe vai permitir transigir nesse sentido. Ela vai continuar trilhando o caminho percorrido, isto é, fazendo o ignóbil jogo do poder, julgando-se salvadora da pátria – afinal não é à toa que ela se chama Jeanne, como Jeanne d´Arc - dona da verdade, mesmo que a sua vida particular esteja totalmente destroçada, o que, na sua opinião, também pouco importa.

Sob esse aspecto, não há como deixar de qualificar como soberbo o trabalho de interpretação de Isabelle Huppert nesse quinto filme que realiza sob a direção de Claude Chabrol num relacionamento profissional de mais de trinta anos. É uma verdadeira aula, que ela dá, de distanciamento crítico do ator em relação à personagem de acordo com a teoria de Brecht. Por meio de sua aparente fragilidade a atriz define com exatidão o conceito que faz da juíza, o de ser uma criatura desprezível, pois só no exercício do poder é capaz de sentir o prazer sexual, já que despreza o marido na cama e mantém relacionamentos dúbios, tanto com um sobrinho dele (Thomas Chabrol), viciado em pôquer, como com um figurão que também faz parte do violento esquema de corrupção que domina a República.

Enfim, pela proximidade do tema que aborda com a degradante realidade brasileira atual, A Comédia do Poder, de Claude Chabrol, embora um tanto ambíguo, além das qualidades técnicas que apresenta, é, como se há de convir, um espetáculo imperdível mesmo porque tem ainda a interpretação soberba de uma grande atriz, Isabelle Huppert no seu quinto trabalho com o diretor. Vale conferir.

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA

A COMÉDIA DO PODER
L´ IVRESSE DU POUVOIR
França/2006
Duração – 110 minutos
Direção – Claude Chabrol
Roteiro – Claude Chabrol
Produção – Patrick Godeau
Fotografia – Eduardo Serra
Música Original – Mathieu Chabrol
Elenco – Isabelle Huppert (Jeanne Charmant Killman), François Bérleand (Hameau), Robin Renucci (Philippe), Thomas Chabrol (sobrinho)

 

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