Theresa Catharina de Góes Campos

  HOMILIAS - MAIO 2009

From: LMAIKOL
Date: 2009/4/17
Subject: Homilias do Hughes - Maio 2009


Reflexões Homiléticas para Maio de 2009:

QUARTO DOMINGO DE PÁSCOA (03.05.09)
Jo 10, 11-18
“O bom pastor se despoja da própria vida por suas ovelhas”

Conforme a Tradição, hoje é o dia Mundial de Oração pelas
Vocações, ou “Domingo do Bom Pastor”. O texto de hoje nos demonstra a
compreensão que a Comunidade do Discípulo Amado tinha da paixão, morte
e ressurreição de Jesus.

A imagem escolhida é a do “pastor” - uma imagem muito usada nos
escritos do Antigo Testamento (Sl 40, 11; Ez 34, 15; 37, 24; Eclo 18,
13; Zc 11, 17; etc.). Às vezes é aplicada ao próprio Deus (Sl 23, 1;
Is 40, 11; Jr 31, 9), às vezes ao futuro rei messiânico (Sl 78, 70-72;
Ez 37, 24), às vezes aos líderes político-religiosos de Israel (Jr 2,
8; 10, 21; 23, 1-8; Ez 34). Também os Evangelistas Sinóticos a usaram
bastante (Mc 6, 34; 14, 27; Mt 9, 36; 18, 12-13; 25, 32; 26, 31; Lc
15, 3-7). Jesus é realmente pastor, pois Ele, o Filho do Homem,
participa da condição humana, inclusive da morte, para nos conduzir à
vida eterna. A palavra grega aqui usada para “bom”, “kalos”, significa
“ideal” ou “nobre” e não somente eficiência na sua função. Assim é
Jesus, pois livremente despoja-se da sua própria vida para salvar a
vida do seu rebanho.

O texto contrasta a ação de Jesus com a atuação dos
pastores mercenários, que não defendem o rebanho, mas somente cuidam
dos seus próprios interesses. Aqui o texto está bem na tradição
profética de Ezequiel (Ez 34) que condenava os “maus pastores” do povo
de Deus - os líderes religiosos e políticos do seu tempo (antes do
Exílio e nos anos entre a primeira deportação para Babilônia e a
destruição de Jerusalém em 587 aC) , que somente exploravam o povo
para o seu próprio proveito, abandonando-o na horas de maior
necessidade. Quanta coisa do tempo de Ezequiel e de Jesus podem ser
aplicadas quase que diretamente a muitos líderes políticos (e às vezes
religiosos) dos nosso tempos!

O trecho destaca o verbo “conhecer” - Jesus conhece as suas ovelhas
como conhece o Pai e é conhecido pelo Pai. “Conhecer”, na linguagem
bíblica, não significa um saber intelectual, mas implica um
relacionamento íntimo de amor e solidariedade. O conhecimento que
Jesus tem dos seus discípulos nasce e se plenifica no amor que existe
entre o Pai e o Filho. Não é um amor só de emoções ou sentimentos, mas
um amor exigente, de assumir o outro até o ponto de doar a vida.
Assim, a morte na Cruz - assumida livremente por Jesus - é a expressão
suprema desse amor.

Mas o amor não pode se restringir aos irmãos e irmãs da
comunidade. A utopia proposta por Jesus é da união entre todos “os
seus” - todos os povos do mundo. Aqui talvez haja uma referência às
outras comunidades não-joaninas do tempo do escrito, mas também
podemos aplicar o texto à missão universal da Igreja - a de colaborar
na realização do Reino de Deus, pois todos os povos do mundo, sem
distinção de raça, cor, cultura ou religião, são misteriosamente
ligados a Jesus, morto e ressuscitado. Não devemos imaginar esse sonho
como um crescimento da Igreja visível até que toda a humanidade faça
parte dela; mas, muito mais como a realização do pedido do Pai-nosso -
“seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu”, onde se
procura o bem, a justiça e a fraternidade, mesmo fora da Igreja
visível, onde se realiza o Reino, ou Reinado, de Deus.

Como seguidores do Bom Pastor também somos convidados à
vivência desse mesmo amor que exige o despojo da própria vida. Isso
não implica necessariamente a morte física, mas a morte ao egoísmo, e
a todos os “ismos” que nos dividem e separam, seja por causa do
gênero, raça, cor, classe ou cultura. Onde há luta em defesa da vida,
lá existe a missão do Bom Pastor, Ele que veio “para que todos tenham
a vida e a tenham plenamente!” ( Jo 10, 10)

QUINTO DOMINGO DE PÁSCOA (10.05.09)
Jo 15, 1-8
“Sem mim, vocês não podem fazer nada”

Esse texto inicia a seção do quarto evangelho que tem os trechos que
mais se aproximam aos discursos da vida pública de Jesus nos
Sinóticos. Aqui temos um exemplo raro de uma parábola em João - a da
vinha e dos ramos, uma metáfora que expressa o amor íntimo entre Jesus
e os seus discípulos. Em contraste, o segmento seguinte (15, 18-16, 4)
vai tratar do ódio do mundo para com os seus seguidores.

No Antigo Testamento frequentemente se retrata Israel como
a vinha (ou videira) escolhida de Deus, que Ele tem cuidado com muito
amor; mas, que deu frutas amargas. Na primeira parte de João vimos
como Jesus substitui as instituições e festas judaicas; agora, Ele se
manifesta como a vinha do Novo Israel. Se ficarem unidos a Ele, os
cristãos darão somente frutos que agradarão ao vinhateiro - o Pai. No
Antigo Testamento, Deus muitas vezes ameaçava podar ou até desenraizar
a vinha improdutiva. Embora a vinha do Novo Israel não falhará, sempre
haverá ramos secos a serem tirados e queimados.

A Bíblia sempre insiste que o fruto que Deus quer é a
prática da justiça e solidariedade. Este tema perpassa a Bíblia toda,
tanto no Antigo como no Novo Testamento. Mas, os cristãos somente
poderão dar este fruto agradável se ficarem unidos a Jesus, pois “sem
mim, nada poderão fazer”. Mais uma vez volta-se à idéia que é pelos
frutos que se conhece a árvore.

Assim nos leva a refletir sobre os frutos que mais de 500 anos de
evangelização têm dado no Brasil e na América Latina. Com uma das
piores distribuições de renda no mundo, com uma das maiores
concentrações de terras nas mãos de poucos, com indígenas e pobres
marginalizados, com tanta gente sofrida, talvez muita coisa tenha que
ser podado pelo Pai, para que realmente sejamos a verdadeira videira
na vinha do Senhor. Como dizia o mártir salvadorenho Dom Oscar Romero:
“Uma religião de Missa Dominical, mas de semanas injustas, não agrada
o Deus da vida.

Uma religião de muita reza, mas de hipocrisias no coração, não é
cristã. Uma Igreja que se instala só para estar bem, para ter muito
dinheiro, muita comodidade, porém que não ouve o clamor dos
injustiçados, não é a verdadeira Igreja do nosso Divino Redentor”
(Discurso 04.12.1977). Sem dúvida, há muita coisa realmente boa
acontecendo nas comunidades cristãs do Brasil, bem como na sociedade
civil em geral, mas o teste mesmo é a construção de uma sociedade
baseada nos princípios de justiça, fraternidade e solidariedade e não
no lucro, competitividade e na lei da selva.

Hoje, diante da recessão mundial, um dos sentimentos mais comuns em
todas as camadas da sociedade é a da impotência. Parece que estamos
sem forças diante do rolo opressor do sistema hegemônico, do
neo-liberalismo, da globalização, das forças do mercado. Seria fácil
cairmos na tentação de desistir da luta para melhorar a sociedade,
pois os resultados parecem ínfimos. Por isso urge cada vez mais
ficarmos unidos a Jesus, na oração e no compromisso, a Ele que parecia
também um derrotado, mas que teve a vitória final na Ressurreição. Se
sem Ele nada podemos fazer, o contrário é também verdade - com Ele
tudo podemos! Talvez não da maneira que gostaríamos, mas sem dúvida
como colaboradores d’Ele na construção do Reino de Deus.

As dificuldades enfrentadas pelos movimentos populares em favor dos
excluídos e pelos setores mais comprometidos das Igrejas, os
sofrimentos dos mártires da caminhada e das suas famílias, são podas -
mas podas que darão mais fruto ainda. Como as forças opressoras do
Império Romano, aliadas às elites do judaísmo, não conseguiram matar o
projeto de Jesus, nem as forças opressoras de hoje conseguirão matar o
crescimento do Reino entre nós - uma vez que fiquemos unidos a Ele, e
entre nós, pois “sem mim, nada poderão fazer”!

SEXTO DOMINGO DA PÁSCOA (17.05.09)
Jo 15, 9-17
“Amem-se uns aos outros”

Poucos trechos do Evangelho de João são tão conhecidos
como o de hoje, pelo menos pelas diversas frases lapidares tecidas
dentro dele. Sobressai o tema básico do “amor” - como a característica
que deve distinguir os/as discípulos/as de Jesus.

O amor é um dos temas preferidos da sociedade atual, como mostram os
nossos cantos, poemas e novelas - mesmo que seja mais na fala do que
na prática. Por isso, torna-se necessário recuperar o sentido profundo
do amor nos Evangelhos. Até um estudo rápido mostra que o termo tem
outro sentido do que aquele que a nossa sociedade liberal e burguesa
lhe atribui. Na sociedade atual, o amor não passa de um sentimento
agradável, uma emoção, quando não de um egoísmo disfarçado. Tendo como
base a emoção, torna-se temporário, volúvel, sem consistência. Passado
o sentimento, termina o amor! Uma das consequências dessa visão
pós-moderna é o alto índice de divórcios, de separações, de
desistências de tudo que é compromisso, pois a base é como areia
movediça, não sustenta o peso do dia-a-dia durante anos.

O amor ao qual Jesus nos conclama tem outro sentido - é o
amor “como eu os amei”. Como foi que Ele nos amou? Dando a sua vida
por nós. O amor torna-se uma atitude de vida, e não um sentimento. A
comunidade dos discípulos/as - a Igreja - deve ser uma comunidade de
pessoas comprometidas com o projeto de Jesus, que veio “para que todos
tivessem a vida e a vida plenamente” (Jo, 10, 10). A comunidade cristã
deve ser muito mais do que um grupo de amigos e companheiros (oxalá
que fosse isso também, pois frequentemente nem isso é!) - deve ser uma
comunidade enraizada no amor de Jesus, que é a encarnação do Deus da
vida, animada pelo seu Espírito e dedicada a criar o mundo que Deus
quer.

A pedra-de-toque de uma comunidade cristã então não será o sentimento
e a emoção, mas os frutos que ela dá, frutos que devem permanecer (v.
16) e que não devem evaporar com a instabilidade dos sentimentos. Tal
comunidade vai ser comunidade de vida e partilha, da justiça e
solidariedade, da verdadeira paz e dedicação. Saberá ultrapassar os
limites da mera simpatia e atração, para assumir a vida de cada irmão
e irmã como expressão do amor do Pai.

É interessante que, embora o trecho situe-se no contexto da véspera da
paixão, Jesus fala da alegra e da alegria completa. É impressionante
como, num mundo que propõe a satisfação imediata pessoal e a
“felicidade já” como metas, garantidas pelo consumo e pelas posses, há
tanta gente desanimada, triste, insatisfeita e deprimida. Quantos
jovens, mesmo - ou talvez especialmente - nas classes mais abastadas,
irrequietos e perdidos na vida. Pois a alegria não vem somente das
posses e dos bens materiais, e uma vida baseada sobre eles vai
necessariamente elevar à frustração. Mas também há muita gente, muitas
vezes com uma vida sofrida e difícil, que irradia a verdadeira alegria
e profunda paz, pois as suas vidas são alicerçadas sobre a rocha - uma
vida de amor verdadeira, na doação de si, na busca duma vida digna
para todos. A sociedade do consumo nos aponta um caminho para a
felicidade - sempre ter mais, numa busca individualista de felicidade,
que só pode nos levar à alegria falsa dos shows de Faustão ou Sílvio
Santos. Jesus nos aponta o caminho para a verdadeira alegria - uma
vida de amor-doação, de busca da justiça e solidariedade, que tem a
alegria não como meta, mas que a traz como consequência.

Não há nenhum mandamento “simpatizai-vos uns com os outros”, mas há o
mandamento do amor! Para isso precisamos de uma vida fortemente
fundamentada no Evangelho e no seguimento de Jesus, pois se não temos,
será impossível sustentá-la. Jesus nos quer como “amigos” e não
servos, ou seja, pessoas que livremente assumem o seu projeto. Assim
assinala que a religião não deve ser simplesmente o comprimento duma
série de leis e regulamentos, mas o seguimento de um projeto de vida,
continuador da sua missão, no mundo atual. Um projeto além das nossas
forças humanas, pelo qual precisamos do dom sempre renovado do
Espírito Santo, um dom que nos é garantido, pois, como diz o texto “o
Pai dará a vocês qualquer coisa que vocês pedirem em meu nome” (v.16).
É um projeto que nos coloca na contramão da sociedade atual, mas que
nos garante uma vida realizada e plena, que os falsos ídolos do
consumismo são incapazes de nos dar. “O que mando é isso - amem-se uns
aos outros”. (v. 17)

FESTA DA ASCENSÃO DO SENHOR (24.05.09)
Mc 16, 15-20
“Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa-Notícia para toda a humanidade”

Este texto, desde v. 9, que contém o fim de Marcos, interrompe o fio
da narração precedente, é muito diferente em estilo e vocabulário do
resto do Evangelho e está ausente dos melhores e mais antigos
manuscritos. Por isso, normalmente está designado nas nossas bíblias
como “Apêndice” provavelmente escrito no segundo século, e baseado
basicamente no Capítulo 24 de Lucas, com alguma adição de João 20 e
com referências de fatos narrados em Atos. Embora não acrescente nada
de novo para uma melhor compreensão de Jesus e dos acontecimentos
pós-pascais, traz elementos muito importantes para a vida da Igreja
hoje.

Destaca-se muito o mandamento missionário de Jesus - o de levar a
Boa-Nova para toda a humanidade (Mt 28, 18-20). A Igreja é por sua
natureza missionária, e uma Igreja que descuidasse desse mandato
estaria traindo a sua identidade. Porém, faz-se necessário distinguir
entre “missão” e “proselitismo”. Igrejas proselitistas têm como meta
angariar fiéis de outras Igrejas para a sua. Giram ao redor de si
mesmas, identificando a sua Igreja institucional com o Reino de Deus.
Uma Igreja missionária tem como objetivo levar a Boa-Nova do Reino
para todas as culturas e religiões, respeitando-as, sendo testemunha
dos valores do Reino de Deus e ajudando a pessoas de boa vontade a
descobrirem a presença do Reino - e do anti-Reino - nas suas próprias
culturas e tradições religiosas. Um aprofundamento desse mandato nos
fará lembrar que nós não somos donos da missão - a missão é do próprio
Deus, cujo Filho Jesus foi o primeiro missionário da Trindade. Ele
deixou a comunidade de discípulos/as para continuar a sua missão da
implantação do Reino de Deus, e nós somos herdeiros dessa missão. A
serviço dela existem diversos carismas, ou dons do Espírito Santo,
para o bem de todos. Mas ninguém está dispensado dessa tarefa
missionária, fechando-se na sua própria comunidade, movimento, ou
Igreja - pelo contrário, devemos sentir-nos unidos aos irmãos e irmãs
do mundo todo e comprometidos com a construção da sociedade justa e
solidária que será uma concretização da Boa-Nova do Reino de Deus. O
objetivo da missão a longo prazo é de reunir a humanidade inteira no
Reino de Deus (que ultrapassa as fronteiras da Igreja visível).
Fazemo-lo através da proclamação explícita da Boa Nova, e no
estabelecimento de um diálogo respeitoso com membros de outras
tradições religiosas, convidando homens a mulheres a pertencer a uma
comunidade de testemunho e serviço e levando a cada ser humano a
missão divina de uma salvação integral.

O texto explicita alguns elementos importantes nessa atividade
missionária: “expulsão de demônios”: expulsando da convivência humana
os sinais do mal, do anti-Reino, que escraviza e oprime milhões de
pessoas, através de estruturas econômicas, sociais e até religiosas,
de exclusão; “falando línguas”: como em Pentecostes, criando uma nova
língua do diálogo e respeito, a linguagem do amor, justiça e
solidariedade; “vencendo veneno”- superando tanto veneno semeado
durante milênios na convivência humana, expressado através do racismo,
machismo, clericalismo, e todos os “ismos” que excluem e nos dividem;
“curando doentes”: lutando na prática para que “todos tenham a vida e
a tenham plenamente” (Jo 10, 10), como fez Jesus, não somente fazendo
curas individuais, mas restaurando a saúde integral, das pessoas e da
criação, através da vivência comunitária e individual do projeto de
Jesus. Seria trágica se esses elementos ficassem reduzidos à busca de
“milagres” duvidosos, a falação de supostas “línguas dos anjos”, e a
satanização de tudo, confundindo expressões de desequilíbrio emocional
com a presença diabólica.

Durante séculos, muitas vezes os cristãos do Brasil - e de muitas
outras regiões - têm se acomodado com a vivência de uma religião
individual, acomodada e frequentemente alienada dos problemas do
mundo. Vivíamos uma separação artificial entre o mundo e o espiritual,
entre a prática religiosa e a transformação social. O mandato de
semearmos a Boa Nova do Reino nos ajuda para que sejamos mais fiéis a
Jesus - não somente à sua pessoa, mas também à sua prática e mensagem,
levando a Boa Notícia do Reino a toda a humanidade.

DOMINGO DE PENTECOSTES (31.05.09)
At 2, 1-11
“Todos ficaram repletos do Espírito Santo”

A liturgia de hoje nos apresenta a descida do Espírito Santo sobre a
comunidade dos discípulos, em duas tradições - a de Lucas (Atos) e da
Comunidade do Discípulo Amado (João 20). Salta aos olhos que uma
leitura fundamentalista da bíblia - infelizmente ainda muito comum
entre nós - leva a gente a um beco sem saída, pois em João, a
Ressurreição, a Ascensão e a Descida do Espírito se deram no mesmo dia
(Páscoa), enquanto Lucas separa os três eventos, num período de
cinquenta dias. Assim, devemos ler os textos dentro dos interesses
teológicos dos diversos autores - os 40 dias de Lucas, por exemplo,
entre a Ressurreição e a Ascensão, correspondem aos 40 dias da
preparação de Jesus no deserto, para a sua missão. Pois, como Jesus
ficou “repleto do Espírito Santo” (Lc 4, 1) e se lançou na sua missão
“com a força do Espírito” (Lc 4, 14), a comunidade cristã se preparou
durante o mesmo período, e na festa judaica de Pentecostes também
experimentou que “todos ficaram repletos do Espírito Santo” (At , 2,
4).

Uma leitura superficial do texto de Atos dá a impressão de
um relato uniforme e coeso – mas, isso se deve à habilidade literária
do autor. Na verdade, ele costurou um relato só, tecendo elementos de
duas tradições. Uma leitura cuidadosa nos mostra essas duas tradições:
a primeira está nos vv.1-4, uma tradição mais antiga e apocalíptica; a
segunda está nos vv. 5-11, mais profética e missionária.

Nos primeiros versículos, estamos no ambiente de uma casa, onde os
discípulos se reuniram. Atos nos faz lembrar que estavam reunidos três
grupos distintos, os Onze, as mulheres, entre as quais Maria a mãe de
Jesus, e os irmãos do Senhor. Embora talvez representem três tradições
cristológicas diferentes no tempo de Lucas, ele faz questão de
enfatizar que todos estavam reunidos com “os mesmos sentimentos, e
eram assíduos na oração” (At 1, 14). Ou seja, a descida do Espírito
não é algo mágico, mas consequência da unidade na fé e no seguimento
do projeto de Jesus.

O primeiro relato (vv. 1-4) usa imagens apocalípticas,
símbolos da teofania, ou da manifestação da presença de Deus - o som
de um vendaval e as línguas de fogo. A expressão externa da descida do
Espírito é o “falar em outras línguas” (não o “falar em línguas”-
glossolalia - tão valorizado por muitos grupos de cunho
neo-pentecostal).

A segunda tradição muda o enfoque. O ambiente muda, da casa para um
lugar público - provavelmente o pátio do Templo. O sinal visível da
presença do Espírito não é mais o falar em outras línguas, mas o fato
que todos os presentes pudessem “ouvir, na sua própria língua, os
discípulos falarem” (At 1, 6). O termo “ouvir” aqui implica também
“compreender”. Três vezes o relato destaca o fato dos presentes
poderem “ouvir” na sua própria língua (vv. 6.8.11). Assim, Lucas quer
enfatizar que o dom do Espírito Santo tem um objetivo missionário e
profético - de fazer com que toda a humanidade possa ouvir e
compreender a nova linguagem, que une todas as raças e culturas - ou
seja, a do amor, da solidariedade, do projeto de Jesus, do Reino de
Deus.

A lista dos presentes tem um sentido especial - estão
mencionadas raças, áreas geográficas, culturas e religiões. Todos
ouvem as maravilhas do Senhor. Lucas ensina que a aceitação do
Evangelho não exige deixar a identidade cultural. Contesta a dominação
cultural, ou seja, a identificação do Evangelho com uma cultura
específica. Durante séculos, este fato foi esquecido nas Igrejas, e
identificava-se o Evangelho com a sua expressão cultural européia. Nos
últimos anos, a Igreja tem insistido muito na necessidade da
“inculturação”, de anunciar e vivenciar a mensagem de Jesus dentro das
expressões culturais das diversas raças e etnias. O texto é uma
releitura da Torre de Babel, onde a língua única era o instrumento de
um projeto de dominação (uma torre até o céu) que foi destruído por
Deus pela diversidade de línguas. Nenhuma cultura ou etnia pode
identificar o Evangelho com a sua expressão cultural dele.

Hoje é uma grande festa missionária. Marca a transformação da Igreja
de uma seita judaica numa comunidade universal, missionária, mas, não
proselitista, comprometida com a construção do Reino de Deus “até os
confins da terra”. Mas, Lucas insiste que a experiência de Pentecostes
não se limita a um evento - é uma experiência contínua - por isso
relata novas descidas do Espírito Santo: numa comunidade em oração
numa casa (At 4, 31), sobre os samaritanos (At 8, 17), e, para o
espanto dos judeu-cristãos ortodoxos, sobre os pagãos na casa do
Cornélio (At 10, 4). Pois, o Espírito Santo sopra onde quer, sobre
quem quer, em favor do Reino de Deus. Aprendamos do texto de Atos, e
celebremos a nossa vocação missionária, não a de falar em línguas, mas
de falar a língua única do amor e do compromisso com o Reino, para que
a mensagem do Evangelho penetre todos os povos, culturas, raças e
etnias.

Jo 20, 19-23

No texto anterior ao de hoje, a Maria Madalena trouxe a
notícia da Ressurreição aos discípulos incrédulos. Agora é o próprio
Jesus que aparece a eles. Não há reprovação nem queixa nas suas
palavras, apesar da infidelidade de todos eles, mas somente a alegria
e a paz, que já tinha prometido no último discurso. Duas vezes Jesus
proclama o seu desejo para a comunidade dos seus discípulos - “A paz
esteja com vocês”. O nosso termo “paz” procura traduzir - embora de
uma maneira inadequada - o termo hebraico “Shalom!”, que é muito mais
do que “paz” conforme o nosso mundo a compreende. O “Shalom” é a paz
que vem da presença de Deus, da justiça do Reino. Como cantamos na
Campanha de Fraternidade, “da justiça nascerá a paz.” Jesus não
promete a paz do comodismo; mas, pelo contrário, envia os seus
discípulos na missão árdua em favor do Reino, prometendo o Shalom,
pois, Ele nunca abandonará quem procura viver na fidelidade ao projeto
de Deus.

Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez (é o mesmo
termo) sobre Adão quando infundiu nele o espírito de vida; Jesus os
recria com o Espírito Santo.

Normalmente imaginamos o Espírito Santo descendo sobre os discípulos
em Pentecostes; mas, aquilo era a descida oficial e pública do
Espírito para dirigir a missão da Igreja no mundo. Para João, o dom do
Espírito, que da sua natureza é invisível, flui da glorificação de
Jesus, da sua volta ao Pai. O dom do Espírito neste texto tem a ver
com o perdão dos pecados.

Que a celebração nos anime para que busquemos a criação de um mundo
onde realmente possa reinar o Shalom, não a paz falsa da opressão e
injustiça, mas do Reino de Deus, fruto de justiça, solidariedade e
fraternidade. Jesus nos deu o Espírito Santo - agora depende de nós
usarmos essa força que temos, na construção do mundo que Deus quer.

Pe. Tomaz Hughes, SVD
E-mail: thughes@netpar.com.br
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