Theresa Catharina de Góes Campos

  DEFINIÇÃO DE SAUDADE

From: Sae Ikari
Date: 2009/4/3
Subject: Enc: DEFINIÇÃO DE SAUDADE.
To:Theresa Catharina de Goes Campos


DEFINIÇÃO DE SAUDADE

Emocionante como uma criança pode definir um sentimento que muitos
adultos não sabem nem mesmo o que é.

Artigo do Dr. Rogério Brandão
Médico oncologista clinico
RC Recife Boa Vista D4500

Médico cancerologista, já calejado com longos 29 anos de atuação
profissional, com toda vivência e experiência que o exercício da
medicina nos traz, posso afirmar que cresci e me modifiquei com os
dramas vivenciados pelos meus pacientes.
Dizem que a dor é quem ensina a gemer.
Não conhecemos nossa verdadeira dimensão, até que, pegos pela
adversidade, descobrimos que somos capazes de ir muito mais além.
Descobrimos uma força mágica que nos ergue, nos anima, e não raro, nos
descobrimos confortando aqueles que vieram para nos confortar.

Um dia, um anjo passou por mim...

No início da minha vida profissional, senti-me atraído em tratar
crianças, me entusiasmei com a oncologia infantil. Tinha, e tenho
ainda hoje, um carinho muito grande por crianças. Elas nos enternecem
e nos surpreendem com suas maneiras simples e diretas de ver o mundo,
sem meias verdades.

Nós, médicos, somos treinados para nos sentirmos "deuses". Só que não
o somos! Não acho o sentimento de onipotência de todo ruim, se bem
dosado. É este sentimento que nos impulsiona, que nos ajuda a vencer
desafios, a se rebelar contra a morte e a tentar ir sempre mais além.
Se mal dosado, porém, este sentimento será de arrogância e
prepotência, o que não é bom. Quando perdemos um paciente, voltamos à
planície, experimentamos o fracasso e os limites que a ciência nos
impõe e entendemos que não somos deuses. Somos forçados a reconhecer
nossos limites!

Recordo-me com emoção do Hospital do Câncer de Pernambuco, onde dei
meus primeiros passos como profissional. Nesse hospital, comecei a
freqüentar a enfermaria infantil, e a me apaixonar pela oncopediatria.
Mas também comecei a vivenciar os dramas dos meus pacientes,
particularmente os das crianças, que via como vítimas inocentes desta
terrível doença que é o câncer.

Com o nascimento da minha primeira filha, comecei a me acovardar ao
ver o sofrimento destas crianças. Até o dia em que um anjo passou por
mim.

Meu anjo veio na forma de uma criança já com 11 anos, calejada ,porém,
por 2 longos anos de tratamentos os mais diversos, hospitais, exames,
manipulações, injeções, e todos os desconfortos trazidos pelos
programas de quimioterapias e radioterapia.

Mas nunca vi meu anjo fraquejar. Já a vi chorar ,sim, muitas vezes,
mas não via fraqueza em seu choro. Via medo em seus olhinhos algumas
vezes, e isto é humano! Mas via confiança e determinação. Ela
entregava o bracinho à enfermeira, e com uma lágrima nos olhos dizia:
faça, tia, é preciso para eu ficar boa.

Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei meu anjo
sozinho no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma resposta
que ainda hoje não consigo contar sem vivenciar profunda emoção.

Meu anjo respondeu:
- Tio, disse-me ela, às vezes minha mãe sai do quarto para chorar
escondido nos corredores. Quando eu morrer, acho que ela vai ficar com
muita saudade de mim. Mas eu não tenho medo de morrer, tio. Eu não
nasci para esta vida!
Pensando no que a morte representava para crianças, que assistem a
seus heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes, indaguei:
- E o que a morte representa para você, minha querida?
- Olha ,tio, quando a gente é pequena, às vezes, vamos dormir na cama
do nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em nossa
própria cama ,não é?
(Lembrei minhas filhas, na época crianças de 6 e 2 anos, que
costumavam dormir no meu quarto e, após dormirem, eu procedia
exatamente assim.)
- É isso mesmo, e então?
- Vou explicar o que acontece, continuou ela: Quando nós dormimos,
nosso pai vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para nossa
cama, não é?
- É isso mesmo, querida, você é muito esperta!
- Olha, tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu vou dormir e o meu
Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida verdadeira!

Fiquei "entupigaitado".. Boquiaberto, não sabia o que dizer. Chocado
com o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o sofrimento
acelerou, com a visão e grande espiritualidade desta criança, fiquei
parado, sem ação.
- E minha mãe vai ficar com muitas saudades minha, emendou ela.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço,
perguntei ao meu anjo: - E o que saudade significa para você, minha
querida?
- Não sabe não, tio?

Saudade é o amor que fica!

Hoje, aos 53 anos de idade, desafio qualquer um a dar uma definição
melhor, mais direta e mais simples para a palavra saudade: é o amor
que fica!

Um anjo passou por mim...

Foi enviado para me dizer que existe muito mais entre o céu e a terra,
do que nos permitimos enxergar. Que geralmente, absolutilizamos tudo
que é relativo (carros novos, casas, roupas de grife, jóias) enquanto
relativizamos a única coisa absoluta que temos, nossa transcendência.

Meu anjinho já se foi, há longos anos. Mas me deixou uma grande lição,
vinda de alguém que jamais pensei, por ser criança e portadora de
grave doença, e a quem nunca mais esqueci. Deixou uma lição que ajudou
a melhorar a minha vida, a tentar ser mais humano e carinhoso com meus
doentes, a repensar meus valores.

Hoje, quando a noite chega e o céu está limpo, vejo uma linda estrela
a quem chamo "meu anjo", que brilha e resplandece no céu. Imagino ser
ela, fulgurante em sua nova e eterna casa.

Obrigado, anjinho, pela vida bonita que teve, pelas lições que
ensinou, pela ajuda que me deu.

Que bom que existem saudades! O amor que ficou é eterno.
Rogério Brandão
Médico oncologista clinico
RC Recife Boa Vista D4500
Cremepe 5758"
 

Jornalismo com ética e solidariedade.