Theresa Catharina de Góes Campos

 

MOSCA HOSPITALAR

 Tereza Halliday – Artesã de Textos

 Pensei que fosse uma mosca volante, daquelas minúsculas que o paciente de oftalmologia vê passar em seu campo visual e é indicador da síndrome do mesmo nome.  Que nada! Ela era robusta e longe de ser ilusão de ótica. Pousava e voava bem à vontade no seu habitat improvável: um espaço hospitalar. Mosca asséptica, desinfetada, concebida sem o pecado original da imundície. Ou não?

 Para ter salvo-conduto naquele ambiente, devia ser uma mosca esterilizada. Ora cruzava o recinto em voo moscal, ora cruzava as perninhas sobre as batas alvíssimas dos enfermeiros, ora beijava os nomes bordados dos médicos no bolso esquerdo das batas, ora desfilava sobre os metais dos leitos dos pacientes e seus lençóis. Segundo os funcionários, todos os esforços foram envidados para expulsar a intrusa, que já se considerava residente permanente. Falaram até em ressurreição dos mortos, pois garantiram que fora assassinada várias vezes pela equipe de dedetização. Mas voltava, resplandecente, no dia seguinte, portando passaporte emitido pela Vigilância Sanitária. Um vexame para a administração da grande empresa hospitalar.

 A perigosa mosca parecia inofensiva.  Chegou a segredar-me que o que a mantinha viva, contente da vida, era respirar incessantemente o poder medical do recinto, mesmo que não lhe fosse dado compartilhá-lo.  Hão de dizer: “Tereza endoidou. Falando com moscas!”. Olhe, leitor, todo artesão de textos (escritor, redator, poeta...) escuta os materiais de seu artesanato e interage com eles.

 Dizem que a mosca entrou clandestinamente a bordo de um jaleco, desses que muitos profissionais da saúde insistem em usar fora do ambiente hospitalar, levando e trazendo germes e bactérias invisíveis e até mosca visível. Nada contei a minha mãe, que põe para lavar imediatamente  roupa usada em visita a hospital, tem extremo zelo pela higiene das mãos e jamais conceberia uma mosca hospitalar,  nem mesmo em romances do mais deslavado realismo fantástico, quanto mais na realidade crua.

 Aos leitores que me sugeriram começar o ano bufando contra os  desmantelos urbanos, lembro que a  coluna “Diário Urbano” (luce.pereira@diariodepernambuco.com.br)  já se ocupa,  por ofício e competência, dessas dores e clamores. Com sua vigilância e verve, Luce Pereira é a porta-voz perfeita de todos nós, quando algo não cheira bem ou vai muito mal nas cidades. Lida com fedores, feiúras, perigos, ilegalidades, falta de noção. Também divulga  raras  notícias boas, que nos impedem de desesperar, como citadinos sofrentes.

                                                   (Diário de Pernambuco, 14/1/2013).

 

Jornalismo com ética e solidariedade.