Theresa Catharina de Góes Campos

     
ESPIÕES QUE VIVERAM 7 ANOS SUBORDINADOS AOS MILITARES PODEM CONTAR SUA HISTÓRIA
* Marco Nerosky

Vivemos um momento delicado em nosso país, em que a figura dos militares fomenta grandes polêmicas.
 Por um lado, há grupos que até defendem uma intervenção militar no Governo Federal, clamando por uma ação rápida e enérgica em meio a tantas denúncias de corrupção, cansados da sofrida e previsível morosidade da justiça e da resolução democrática de nossas mazelas. Por outro lado, existem muitos grupos de opinião diametralmente oposta àquelas, que se arrepiam só de ouvir falar em militares, que morrem de medo do Bolsonaro e tecem inúmeras críticas ao período de governo dos militares. Pra esse segundo grupo, militar não deveria nem se aproximar de política, muito menos se candidatar em eleições democráticas, já que as ideias dos militares são meio suspeitas, seus métodos são misteriosos, suas atitudes nebulosas, e suas intenções um tanto quanto imprevisíveis, segundo sua visão. Além disso, consideram os militares passíveis de algum tipo de tendência autoritaritária ou “extremista”, o que poderia constituir um risco à nossa democracia.

Nesse contexto, seria muito útil se tivéssemos uma espécie de “espião”, que fosse muito atento, curioso e observador, mas ao mesmo tempo pequeno, discreto, aparentemente inofensivo e que pudesse viver com esses militares sem que eles se incomodassem. Ah, se esse pequeno e discreto ser pudesse conviver disfarçado com eles por vários anos, observando suas conversas, fingindo ser um deles, explorando seus pensamentos, ouvindo suas reais ideias e pudesse, ainda assim, voltar ileso e consciente, com tudo impresso em sua memória pra nos contar exatamente o que passa pela cabeça deles! Seria muito bom mesmo! Se esse “espião” existisse, sua opinião teria que ser ouvida pela sociedade, já que essa experiência seria extremamente embasada e muito rica em informações e detalhes, que poderiam nos mostrar de uma vez por todas como esses tais militares realmente são!

Pois esse “espião” existe. Na verdade, a cada ano, cerca de 3.000 novos “espiões” concluem sua missão e voltam pra sociedade civil para dar seus testemunhos. Mas esse grupo de “espiões” que chegam a viver até 7 anos de suas vidas subordinados ao Exército Brasileiro, pouco foi ouvido para opinar sobre os militares. Trata-se do grupo de ex-alunos dos Colégios Militares do Brasil.

O atual Sistema Colégio Militar do Brasil é formado por 13 Colégios Militares (CMs), que oferecem ensinos fundamental e médio. Esses estabelecimentos de ensino estão localizados em vários Estados do Brasil e propiciam educação gratuita a aproximadamente 15 mil jovens de ambos os sexos, mediante processo seletivo.

Ué, mas tem gente que concorre pra se submeter aos militares? Sim, e tem muita gente! Todo ano, concorrem, em média, 22 mil candidatos! Isso contabilizando apenas os CMs vinculados ao Exército. Atualmente, já existem Colégios Militares vinculados à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros também. Seriam eles loucos? E pro aluno, vale a pena estudar em um CM? E as práticas didático-pedagógicas nos CMs, elas obedecem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional? Claro que sim, mas também estão subordinadas às normas e prescrições do Exército. Então, lá os alunos tem que usar farda, marchar, prestar continência, entrar em forma, passar por testes físicos? Sim, tudo isso e mais um pouco: tem que cuidar bem da farda, não é possível usar celulares na sala de aula, cobra-se que os sapatos estejam engraxados diariamente, que a fivela do cinto esteja sempre brilhante, que o cabelo esteja com o corte adequado (no caso dos homens) ou com penteado padronizado (no caso das mulheres). Além disso, é necessário ser pontual e aprender sobre os nossos hinos, sobre a bandeira nacional, sobre hierarquia, disciplina, respeito e várias outras coisas que os jovens costumam achar um saco, mas que os fazem muito bem a longo prazo.

Não é à toa que a procura é tão grande e a concorrência para entrar cada vez maior. O ensino é de altíssima qualidade, o resultado nas avaliações anuais é acima da média e a maioria dos formandos ingressa em umiversidades públicas após a conclusão do ensino médio. Animados com essa performance surpreendente, alguns estados, como Goiás, já repassaram algumas escolas públicas para a administração de militares e estão bastante satisfeitos com os resultados. Outros governos, como o de Santa Catarina, desejam seguir esse mesmo caminho.

Eu fui um desses espiões. E te garanto que foi uma das melhores decisões e experiências da minha vida. Fui da turma que se formou em 1993 no Colégio Militar de Brasília. Era tão rigoroso mesmo quanto todo mundo imagina? Eu diria que não. Fazíamos nossas bagunças, como toda criança e adolescente faz. Talvez a maior diferença fosse a certeza da punição, sentimento infelizmente raro no Brasil da atualidade. Poderíamos até fazer algo errado, mas, ao começar, já sabíamos que estávamos errados, porque as regras são bem claras. E já sabíamos que, se fôssemos pegos no erro, haveria uma punição. Aprendemos com isso a assumir responsabilidade por nossas ações.

A carga horária era um pouco maior do que a dos demais colégios. O portão de entrada era fechado às 6:40 e as aulas se extendiam até 12:50. Era puxado sim, mas nos adaptávamos rapidamente. Valia a pena, porque a qualidade do ensino era o grande diferencial. Lembro de termos a maioria das provas discursiva, enquanto os amigos de outras escolas tinham muitas provas de múltipla escolha. A escrita era muito estimulada, mesmo quando a disciplina não era a Língua Portuguesa. Além dessa ênfase na redação e na Língua Portuguesa, disciplinas como Geografia, História e todas exatas eram muito valorizadas. Tínhamos, ainda, algumas aulas que não eram oferecidas pra alunos do mesmo ano de outras escolas, como EMC (Educação Moral e Cívica), Desenho Geométrico, OSPB (Organização Social e Política do Brasil) e até Datilografia (sim, eu sou dessa época e tive aula disso). Os professores mantinham dedicação exclusiva ao CMB e eram realmente referências em suas áreas de atuação.

Até hoje, eu e vários outros ex-alunos do Colégio Militar de Brasília mantemos a convivência. Os laços de amizade formados no CMB se mantêm inabalados até hoje. Formamos um grupo bastante heterogêneo e estamos em todas as regiões do Brasil. Nesse grupo, é possível encontrar engenheiros, advogados, arquitetos, administradores, dentistas, médicos, contadores, militares, professores, empresários, economistas, dentre várias outras profissões. Temos dois sentimentos comuns que nos unem: a amizade formada no CMB e o amor incondicional pelo Brasil.

Sabemos da importância da nossa contribuição pra sociedade de uma forma menos teórica e temos realizado esse trabalho por meio do CMB Solidário, uma iniciativa dos ex-alunos do CMB, que realiza ações de assistência financeira e social, educação e prestação de serviços gratuitamente à sociedade, a partir da doações, que podem ser de tempo, dinheiro ou de algum serviço especializado. Já ajudamos várias instituições e pretendemos crescer e ajudar ainda mais, assim que mais ex-alunos forem tomando conhecimento e fazendo parte dessa iniciativa. Entendemos que fomos beneficiados pela sociedade que nos ofereceu um ensino público de qualidade. Nada seria mais justo do que devolvermos à sociedade um pouco do que recebemos.

Mas e os militares, afinal, como são? Em primeiro lugar, são pessoas comuns, como eu e você. Mas são mais patriotas que o cidadão médio, têm mais sentimento de orgulho e pertinência pelo Brasil. Valorizam muito a Amazônia, o Pantanal, nossa cultura, nossa raiz histórica e os símbolos nacionais, mas não como uma obrigação infundada imposta pelo regimento. Eles respeitam mesmo a hierarquia, o hino, a bandeira, as armas e a República porque os consideram símbolos dos valores que defendem e do sentido de vida que escolheram. São servidores com salários pré-definidos, cujas expectativas de ascensão social se restringem às promoções funcionais naturais da carreira. Seus interesses pelo Brasil não são financeiros e nada têm a ver com qualquer vantagem pessoal. No mais, são pessoas simples, que conhecem bem o Brasil, justamente pelo fato de sofrerem diversas transferências ao longo de suas carreiras. Eles verdadeiramente gostam do Brasil, gostam de ser brasileiros e gostam dos brasileiros.

Eu diria que os militares têm uma preocupação quase paternal com os destinos do Brasil. Parecem realmente se sentir pais responsáveis de um filho adolescente, imaturo, desorientado e inconsequente. Querem saber que rumo está tomando, com quem está andando, quais valores lhe estão sendo transmitidos e se, no final, vão ficar bem quando eles não estiverem mais presentes.

Findo essa reflexão te convidando para um desafio: desconfie de mim e de tudo que eu acabei de te contar. Ter um olhar crítico foi umas das diversas virtudes que aprendemos no CM. É fundamental questionar, duvidar, ouvir mais de uma opinião. Por isso, te convido a conhecer um desses “espiões”, um ex-aluno de CM. Quando encontrar um ex-aluno, pergunte sua opinião sobre o período em que estudou no CM. Indague sobre o ensino, sobre a disciplina, sobre a vida militar, sobre sua preparação para o vestibular. Questione se a disciplina, a existência de regras mais rígidas que o usual, a presença de mais normas e procedimentos foram prejudiciais ou benéficas em sua vida. Pergunte especificamente sobre os militares: se eram pessoas boas, bem intencionadas, trabalhadores preocupados com o Brasil ou se eram seres malvados, autoritários, mal intencionados e cruéis com as crianças e adolescentes. Você não tem ideia do quanto esses “espiões” tem pra te contar sobre os militares. Espero que, depois dessa conversa, sua visão sobre os militares seja a mais fidedigna possível e você possa, assim como os 3.000 formandos anuais dos CMs, ser grato pelo trabalho incansável que eles realizam e pelo amor sincero que eles possuem pela nossa cultura e pelo nosso país.

* Marco Nerosky, ex-aluno da turma de 1993 do Colégio Militar de Brasília (CMB). Atualmente é médico cardiologista, voluntário do CMB Solidário e escreve nas horas vagas.
 

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