Theresa Catharina de Góes Campos

 

 

 
 Novo mundo, velhos deuses
Repassando, em anexo, o excelente artigo, do jornalista Aylê-Salassié Quintão,  sobre este momento angustiante, que estamos vivendo, neste país, vendo o barco, sem comando, indo, aos poucos, a pique, sem que nada possamos fazer!... Reynaldo Domingos Ferreira


Ressuscitando deuses e criando novos monstrinhos

  • Publicado em 9 de março de 2021

Consultor de projetos sociais | Consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais

 

A barbearia fora fechada, por decreto, pelo governador. Cabisbaixos, os dois profissionais autônomos estavam sentados no passeio, do lado de fora, rodeados por alguns clientes. O fiscal passara por ali e cerrara as portas dos seus “ganha pão”. Cada um era pai de três crianças menores.  Não podiam parar de trabalhar um dia sequer.  “Só dia 14!”, advertiu  com ar superior o preposto do Estado.

O governador assinara um ato suspendendo as atividades econômicas, impondo, com ameaça de multa, o confinamento dos cidadãos por dez dias. Expunha-se a outra face do drama da pandemia do covid. No dia seguinte, diante da repercussão negativa, o governador encenou sensibilidade, editando novos decretos, agora, contraditoriamente, permitindo a reabertura das portas das academias, dos bares e restaurantes.

 Passado um dia, viria um terceiro ato, suspendendo  novas atividades produtivas. Permitia, entretanto,  reabrir coisas como  bancas de jornal. Os ginásios estavam fechados para o vôlei; mas, os estádios abertos, com ressalvas,  para o futebol.   

Uma descoordenação total. Um vai e vem de ordens, uma desordem.  Os atos oficiais pareciam surfar  pelas madrugadas num copo de whisky.

Atemorizada pelo aumento do número de mortos, a população assistia boquiaberta àquele solitário jogo de damas do governador. 

Seria o lockdown uma necessidade , de fato, diante das ameaças pandêmicas, ou uma mera expressão do seu auto empoderamento? 

Uma brincadeira  de mau gosto ou uma corajosa tomada de decisão? Impressionava perceber como o governante podia tudo – era o tal poder que emanava do povo - , estando  bêbado ou não.  O Presidente da República não fazia por menos: atropelava e desatropelava; agredia e contemporizava. Em um momento, anunciava a compra de uma vacina contra a pandemia, gerando esperanças; em seguida, o cancelamento. Já era outra a que interessava. Ministros e secretários de saúde se sucediam. 

Todos eram a favor do confinamento hoje. Instantes depois já se sentiam incomodados.

 Enfim, a incoerência tornava-se uma peça chave no xadrez que conduzia o poder de vida ou de morte do governante sobre os cidadãos. Espalhava-se pelos governos e governadores, alguns ameaçando ainda pular a cerca das próprias jurisdições regionais, com acusações aos pares: uma guerra santa. O barbeiro estava lá estirado sem saber como ia levar comida para casa no final do dia. O fiscal desaparecera: safara-se da responsabilidade, alegando que cumprira seu  dever.

A partir da instabilidade emocional dos governantes a pandemia ganhava a volubilidade das ruas. Os índices de mortalidade vulgarizavam-se, e começavam a configurar uma anomia geral. Passou a servir de mote para exercícios nas artes, e até de motivos de chistes entre amigos. Tinha gente vendendo atestado de óbito. Ninguém parecia ter mais qualquer compromisso com a vida . Perdia-se o pudor diante da morte.

O Presidente (e a família) iam-se tornando vagarosamente também incômodos. Ao invés de acalmar a população, ele gerava sistematicamente insegurança. Mentia, dizendo ou desdizendo . E não iria mudar. Ele era assim mesmo, diferente dos 220 milhões de brasileiros.

Quando cobrados pelos cidadãos, os governadores transferiam irresponsavelmente o combate à pandemia para a União, de quem  esperavam sempre ajuda financeira. “Se é para transformar o Brasil em uma Venezuela, eu saio”. Mas em assuntos de governo, não se perde por esperar. Em meio a esse cipoal de medidas e desmedidas, o próprio ministro da Fazenda anunciaria , logo depois, mais R$ 44 bilhões para a saúde, para ser dividido, em convescote,  com os governadores; e uma retomada da ajuda emergencial, em dinheiro vivo, para 40 milhões de pessoas. Até tu, Guedes!

Sem ninguém saber exatamente como gerir a pandemia, o coronavírus, como um tsunami,  atravessa o espaço da história e sacraliza no campo a religiosidade da política. Os espertos usam o flagelo para encobrir os mal feitos. Mas ele serve também para empoderar vaidades e ressuscitar  deuses mortos, bem como velhas práticas - jurídicas inclusive -  e façanhas, criando e recriando monstrinhos. É a  herança dessa bela democracia, temperada com ficções ideológicas pequeno burguesas e vulgaridades populistas . A pandemia estimula governantes e juízes a tornar as verdades irrelevantes.Desaparece o domínio dos fatos.

 

Jornalismo com ética e solidariedade.