“UM TRIBUNAL QUE JOGA PARA LULA” J. R. Guzzo -
Revista Oeste - 22 JULHO 2022
“Moraes proibiu que qualquer brasileiro diga
nas redes sociais uma única palavra sobre as
possíveis ligações que existem entre Lula, o PT,
o PCC e o assassinato do prefeito Celso Daniel.
Prepara-se neste momento no Brasil, à vista
de todo mundo e com a falsificação da lei por
parte dos que têm a obrigação de garantir o seu
cumprimento, o que tem toda a cara de ser o
roubo de uma eleição — ou algo tão parecido com
isso, mas tão parecido, que fica difícil dizer
qual seria a diferença. Podem não conseguir.
Podem desistir no meio do caminho. Pode até ser,
dentro do princípio geral de que tudo é
possível, salvo prova científica em contrário,
que acabe havendo eleições limpas para a escolha
do próximo presidente da República daqui a dois
meses e meio. Mas provavelmente nunca, nos 522
anos de história deste país, uma facção política
que controla a eleição e a apuração dos votos
fez tanto esforço para dar a impressão que está
usando o aparelho do Estado com o propósito de
fazer exatamente isso: garantir, antes da
votação e seja lá qual for a vontade dos
eleitores, a vitória do seu candidato à
presidência. Esse candidato é o ex-presidente
Lula.
Não há nisso tudo nenhum mistério ou problema
incompreensível de física nuclear. Vota-se, no
Brasil, com um sistema eleitoral que
essencialmente só é utilizado em dois outros
países, Butão e Bangladesh — e não se admitiu
até agora a mínima sugestão para dar mais
segurança ao processo. Encerrada a votação, um
funcionário do Estado que preside o “tribunal
eleitoral”, uma aberração que não existe em
nenhuma democracia séria do mundo, vai dizer
quem ganhou — sem que haja, por parte de
ninguém, a possibilidade material de verificar
se a apuração dos votos corresponde à vontade
que a maioria dos eleitores registrou nas urnas
eletrônicas. Esse funcionário é o ministro
Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal
Federal, com o apoio fechado de oito entre os
seus dez colegas de função pública — é ele quem
vai chefiar o TSE nessas eleições. Acontece,
muito simplesmente, que o ministro Moraes dá a
entender todos os dias, pelas decisões oficiais
que está tomando, que não é imparcial. Ao
contrário: age como inimigo aberto de um dos
candidatos, o presidente da República, e como
militante também aberto do seu adversário. Não é
uma questão de achar ou não achar isso ou
aquilo. É o que está nos despachos do ministro.
Como evitar, assim, que cresça dia a dia a
desconfiança geral na honestidade dessas
eleições? Não basta que uma eleição seja
honesta. Ela tem de parecer honesta, como a
mulher de César. Essa aí não está parecendo, nem
um pouco.
Os fatos são os fatos. Em seu último conjunto
de decisões, Moraes proibiu que qualquer dos 200
milhões de brasileiros diga nas redes sociais
uma única palavra sobre as possíveis ligações
que existem entre Lula, o PT, a organização
criminosa PCC e o assassinato do prefeito Celso
Daniel, de Santo André — atendendo a uma
exigência feita pelos próprios Lula e PT. É um
ato inédito, em sua ambição, seu rancor e sua
violência, contra a liberdade constitucional de
expressão garantida por escrito na principal lei
do país. A informação sobre essas ligações é
fato público: foi impressa e divulgada
digitalmente pela revista Veja, reproduzida por
outros veículos de imprensa e debatida no
ambiente político. Faz parte, aliás, de um
documento oficial — o depoimento de confissão,
homologado pela justiça, de Marcos Valério, o
intermediário na distribuição de propinas no
primeiro governo Lula. Que lei permite ao
ministro impedir que alguém mencione um fato
exposto ao conhecimento geral pela mídia? O que
Moraes decidiu na prática é que ninguém pode
dizer a seguinte frase no Twitter, no Facebook e
em outras redes sociais: “Eu li na Veja que o
Marcos Valério falou à justiça sobre ligações
entre Lula, o PT, o PCC e o assassinato do
prefeito Celso Daniel”. Como assim, “não pode”?
As informações já foram publicadas na mídia, e a
mídia, pelo menos até agora, não está proibida
de dizer nada, nem obrigada a dizer o que quer
que seja; a divulgação das palavras de Marcos
Valério, assim, foi perfeitamente legal. Como,
então, o sujeito não pode repetir fatos que
foram expostos legalmente? A imprensa pode falar
e o cidadão não pode? É isso o que o ministro
resolveu?
Moraes mandou apagar das redes as menções
feitas sobre o relacionamento entre Lula, PT e
PCC; afirmou que são “mentiras”. Quem disse que
são “mentiras”? Não foi a justiça. O caso
Valério continua em aberto; como o ministro pode
dizer, antes da decisão final do processo, que
as declarações do intermediário do “Mensalão”
são mentirosas? Quem está dizendo isso é Lula e
o PT, só eles, para não terem de responder
perguntas sobre o assunto durante a campanha
eleitoral — eles e, agora, Alexandre de Moraes.
Onde está, nesse caso, a imparcialidade do
magistrado que vai dizer, em outubro, quem
ganhou a eleição? O que ele fez, neste episódio,
foi interferir diretamente na campanha, tomando
o partido de um dos candidatos. É exatamente a
mesma parcialidade que Moraes mostrou ao dar
“dois dias” para o presidente Jair Bolsonaro
“explicar” a acusação, feita por partidos de
esquerda, de que ele incentiva o chamado
”discurso do ódio” na campanha eleitoral. De
qual ato de “ódio”, objetivamente, se acusa
Bolsonaro? Os acusadores não citam nenhum. Dizem
apenas que seus discursos “configuram-se em
estímulos psicológicos que vão construindo no
imaginário dos seus apoiadores e seguidores a
desumanização dos opositores”. É isso, promover
o ódio? Moraes afirmou que essas alegações são “relevantíssimas”.
Não disse uma sílaba, porém, sobre o filme em
que Bolsonaro aparece assassinado numa passeata
de motocicletas, jogado no chão, com sangue e
uma faixa verde-amarela de presidente. Isso,
para os árbitros supremos das eleições, não é
ódio — nem o vídeo em que uma turma aparece
jogando futebol com a cabeça do presidente da
República.
“É um claro abuso de poder, uma censura
inaceitável e um facciosismo incontestável”, diz
o jurista Adilson Dallari sobre a proibição de
se falar nas redes sociais a respeito das
ligações de Lula e PT com o PCC. “O despacho
deveria terminar com a expressão: ‘PT
saudações.’” O advogado e ex-desembargador Ivan
Sartori diz que a decisão de Moraes é censura
prévia. “O artigo 220 da Constituição estabelece
que a manifestação do pensamento, a criação, a
expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo, não sofrerão qualquer
restrição”, diz ele. “A retirada prévia implica
em censura.” O jurista Dircêo Torrecillas acha
estranho que Moraes tenha decidido que as
afirmações sobre Lula, PT, PCC e Celso Daniel
sejam falsas antes da apuração do caso. “As
eventuais punições por crimes de calúnia,
injúria ou difamação só podem vir depois que
forem concluídas as investigações”, diz ele. O
professor Ives Gandra Martins diz que a história
em torno de Celso Daniel é um boato, já que não
há provas sobre o que realmente aconteceu — mas
na sua opinião boato se desmente, e não se
transforma em causa levada à suprema corte do
país.
Tudo o que o ministro Alexandre de Moraes
decide vai na mesma direção. Ele acaba de
prorrogar por mais 90 dias o inquérito ilegal,
inédito e perpétuo que conduz desde 2019 — isso
mesmo, 2019, ou três anos — para investigar
“fake news”. Não há um único fato que possa ser
apresentado para justificar a continuação desse
inquérito que não acaba mais, e que não tem
similar na história da justiça brasileira. Um
ministro do STF não tem direito de abrir e
chefiar um inquérito policial sobre causa
nenhuma. Não pode chamar agentes da Polícia
Federal para trabalharem sob suas ordens
diretas. Não pode negar aos advogados o acesso
aos autos da sua investigação. Não pode
recusar-se a especificar para os indiciados
quais as acusações legais que estão sendo feitas
contra eles. Não pode prender durante nove
meses, e depois condenar a nove anos de cadeia,
um deputado federal no exercício do seu mandato.
Não pode bloquear salários. Não pode — mas foi
feito, e continua sendo feito. A única função do
inquérito de Moraes, no mundo das realidades,é
perseguir o presidente da República e os seus
aliados. Como falar em neutralidade da “justiça”
nesta campanha eleitoral se o ministro mantém
aberto, pelo menos até o dia da eleição, um
processo oficial que hostiliza abertamente um
dos candidatos — e só ele? Em que democracia do
mundo se faz um negócio desses? Mais: como
Moraes pode ser imparcial e, ao mesmo tempo,
receber para uma reunião íntima, a portas
fechadas, os chefes dos partidos de esquerda? Se
existe alguma questão legal a ser resolvida,
quem teria de se dirigir ao ministro seriam os
advogados; em vez disso, ele recebe os políticos
que compõem uma das partes da disputa eleitoral.
É do conhecimento geral, também, a coleção de
ameaças, inclusive de prisão, que Moraes faz
contra o que ele considera o “mau uso” dos
recursos digitais na campanha — e nas quais fica
claro, até para uma criança com 10 anos de
idade, qual dos dois lados da disputa está sendo
de fato ameaçado.
O marechal de campo do “tribunal eleitoral”
tem o apoio quase completo dos colegas. O
ministro Edson Fachin parece ser o primeiro
deles. Fachin tomou a extraordinária decisão de
anular, por erro de endereço postal, as quatro
ações penais contra Lula — inclusive sua
condenação pelos crimes de corrupção e lavagem
de dinheiro, em três instâncias e por nove
juízes diferentes. Ele criou, com essa canetada,
a candidatura de Lula à presidência — e, agora,
acusa Bolsonaro de querer dar um “golpe” nas
eleições. Não gostou, nem um pouco, que o
presidente tenha se reunido com embaixadores
estrangeiros para falar das eleições. Ele estava
simplesmente exercendo o direito de apresentar o
seu lado numa discussão na qual os adversários
se manifestam a cada cinco minutos, aqui e no
exterior; provocou reações histéricas. “Basta”,
disse Fachin. “Basta” o quê? Qual a sentença que
o ministro vai dar na próxima vez que Bolsonaro
falar ou fizer alguma coisa que ele não gosta?
Ainda falta tempo para as eleições. O presidente
não vai ficar quieto até lá. O STF, então, vai
cassar a sua candidatura? Há também o ministro
Luís Roberto Barroso. Esse já disse que “eleição
não se ganha, se toma”. Também afirmou, numa
conferência nos Estados Unidos, que Bolsonaro é
o “inimigo”. Dos outros ministros nem é preciso
falar. Sete dos 11 foram nomeados por Lula e
Dilma Rousseff. Outros dois são Alexandre de
Moraes, justo ele, e Gilmar Mendes, que chorou
em homenagem aos advogados que defenderam Lula
nos seus processos criminais. São essas as
figuras que vão lhe dizer quem ganhou a
eleição.” |