Theresa Catharina de Góes Campos


Repassando, amigos, artigo do professor de urologia da USP, Miguel Srougi, bastante elucidaditivo sobre câncer de próstata, RDF

ARTIGO

Em torno do câncer da próstata - MIGUEL SROUGI

Revendo  meus  antigos  escritos,  infelizmente  cada  vez  mais numerosos, deparei-me  com  um texto sobre o câncer da próstata publicado nesta Folha. Dizia  que  o  problema  só  atingia  homens  idosos  e  apregoava virtudes ilimitadas  do  toque  da  próstata  e do exame de PSA. Ademais, conclamava todos os homens a realizar exames preventivos, porque em 70% deles o câncer já era descoberto em fases avançadas.

Resolvi  escrever de novo sobre o assunto, para reparar tantas imprecisões. A  bem da verdade, aproveito-me de um momento bastante oportuno. Até câncer da  próstata  torna-se  um  assunto  ameno diante do noticiário que recheia nossos jornais nos últimos tempos.

A próstata é uma glândula com a dimensão de uma noz, localizada na saída da bexiga.  Com  o  passar  dos  anos,  quase  todos  os  homens apresentam um crescimento  benigno  da glândula, sem maior gravidade, mas que em um terço dos  casos  dificulta  a  expulsão da urina. Além do crescimento benigno, a próstata pode também dar origem a um tumor maligno, que, de longe, é o mais freqüente no homem.

Cálculos  realizados  pela  American  Cancer  Society  indicam  que 18% dos norte-americanos  irão  desenvolver  câncer  da próstata. A bem da verdade, todo  homem  nasce  programado para ter a doença, o número de casos aumenta com  a  idade  e ninguém será poupado se viver até os cem anos. Por motivos ainda  não bem compreendidos, o câncer da próstata passou a envolver homens mais  jovens. Na década de 80, apenas 0,8% dos pacientes atingidos pelo mal tinham  menos  do  que  55  anos  de  idade  -atualmente  5%  dos casos são identificados nesse grupo.

Nos  países  do Extremo Oriente, como China e Japão, a ocorrência do câncer da  próstata  é  sete  vezes  menor  do  que  nos  Estados Unidos. De forma interessante,  estudo realizado em 1991 demonstrou que japoneses que migram para  os Estados Unidos passam a apresentar a doença com a mesma freqüência que  os  norte-americanos.  Portanto,  ao  contrário do que se pensava, são fatores  ambientais os principais reguladores do aparecimento desse câncer. Isso  explica  pesquisa  feita pela Unifesp com membros da tribo parkategê, que vive no sul do Pará.

Os  índios  nativos tinham baixa incidência de câncer da próstata e, quando foram colonizados pelos brancos, assumindo seus hábitos, tornaram-se obesos e  passaram  a  apresentar  a  doença  com  a  mesma  freqüência  que  seus colonizadores.  Num  concerto em que as populações indígenas passaram a ser chamadas de "evoluídas"!

As causas do câncer da próstata são ainda ignoradas, mas sabe-se que alguns homens  têm  maior  risco  de  desenvolver o problema. A chance de a doença ocorrer  é maior quando existem casos familiares e aumenta duas vezes se um parente  de 1º grau (pai ou irmão) é atingido pelo tumor, três vezes quando dois  parentes  de 1º grau são portadores do problema, e cinco vezes quando três  parentes  têm a doença. Negros têm o dobro da incidência de câncer da próstata,   e  neles  o  tumor  costuma  ceifar  mais  vidas.  Conquanto  a transmissão  hereditária  de  genes  mais  agressivos  possa  explicar essa propensão,  estudos  recentes  patrocinados  pela  American  Cancer Society sugerem  que  esse comportamento também está relacionado com marginalização social  e  menor  acesso  aos  tratamentos  curativos  e  aos  programas de diagnóstico precoce. Fenômeno perverso, que talvez se repita numa sociedade desigual como a nossa.

Obesidade,  vasectomia  e  excesso  de  atividade  sexual,  lembrados  como possíveis  causadores  do  câncer  da  próstata,  não  parecem ter qualquer vínculo com a origem da doença. Contudo, homens obesos atingidos pelo tumor costumam  evoluir  de  forma  mais  desfavorável.  Por  outro  lado,  maior freqüência de atividade sexual talvez até iniba o aparecimento do câncer da próstata.  Estudo realizado nos Estados Unidos, com cerca de 29 mil homens, revelou  que  a  incidência  desse  câncer  é  33% menor nos indivíduos que ejaculam  mais  do  que cinco vezes por semana, quando comparados aos que o fazem  apenas  uma  vez por semana. Alegro-me ao relatar esse estudo, enfim uma  boa  notícia  no  meio  de  um  texto  tão árduo. Lembrando que, ao se exercitar  bastante,  também se evita a obesidade, atenuando a gravidade da doença, se ela insistir em aparecer.

O  câncer  da  próstata  é  curável  em  70%  a  90%  dos  pacientes quando identificado em fases iniciais, ainda confinado à glândula. Contrariamente, o  câncer  só  é  controlado em 30% a 40% dos pacientes quando se expande e atinge os tecidos vizinhos ou se alastra pelo organismo. Isso explica todos os esforços dos especialistas para identificar precocemente a doença. Nesse sentido, todo homem com mais de 50 anos (ou mais de 40 anos, quando existem casos  familiares) deve realizar anualmente o toque da próstata e a dosagem no  sangue  do chamado antígeno prostático específico, o PSA. A presença de câncer   da  próstata  deve  ser  cogitada  quando  o  toque  revela  áreas endurecidas  na  glândula  ou  quando  os  níveis de PSA são superiores a 4 ng/ml.  Para  obter  uma  maior  eficiência,  ambos  os  testes  devem  ser executados conjuntamente, pois o toque falha em 40% a 50% dos pacientes, as medidas de PSA falham em 20% a 25% deles, e a utilização combinada dos dois exames deixa de identificar o câncer em apenas 9% dos casos.

De  forma  inesperada, observou-se recentemente que muitos homens com toque prostático  normal  e com níveis de PSA inferiores a 4 ng/ml já podem estar acometidos  pela doença. O mais desconcertante desses estudos foi publicado em  2004  por  um  grupo  de  sete  instituições norte-americanas. Biópsias prostáticas realizadas em 2.950 voluntários que apresentavam toque e níveis de  PSA  normais  evidenciaram a presença de câncer em 15% deles, incluindo homens  que  exibiam  taxas de PSA próximas a zero. A conclusão obvia é que medidas de PSA superiores a 4 ng/ml podem indicar a existência de câncer na próstata,  mas  níveis  normais  dessa proteína não descartam a presença da doença. Por causa dessas observações, os especialistas passaram a solicitar biópsias  de  próstata quando os níveis de PSA ultrapassam a faixa de 2,0 a 2,5  ng/ml, com a ressalva de que valores elevados podem ser tolerados se o paciente é mais idoso, se tem um histórico de infecções prostáticas, se tem a  glândula  muito  volumosa  ou  se os valores de PSA no sangue, apesar de alterados, mantêm-se estáveis. E, como sempre, se tiver um médico atento ao seu  lado.  Quando a realização do toque é rejeitada de forma intransigente (e, certamente, descabida), biópsias prostáticas devem ser realizadas se os níveis de PSA forem superiores a 2,5 ng/ml.

Um  outro  dado igualmente desconcertante emergiu de estudo desenvolvido em nosso meio. Foram analisados 890 pacientes com câncer da próstata, tratados com cirurgia radical e acompanhados por pelo menos cinco anos pelo grupo da Unifesp.  Nesses  doentes  as  chances  de  cura  foram  mais consistentes, situando-se  acima de 90%, quando os níveis de PSA iniciais eram menores do que 4 ng/ml, ou seja, normais.

Vistas  globalmente,  essas  novas  observações  indicam  que  o  câncer da próstata  é  mais  comum  do  que  se  imaginava, que o exame de PSA é mais imperfeito  do que parecia e que os portadores do mal são tratados com mais eficiência  quando  o toque prostático e as dosagens de PSA são normais, ou seja,   na  fase  em  que  o  câncer  é  dificilmente  identificado.  Essas informações  têm  sido  vistas pelos especialistas de dois ângulos. Os mais pessimistas  prevêem  que  em  pouco  tempo todos os homens maduros deverão realizar  biópsias  anuais da próstata, em vez de toque e medidas do PSA no sangue. Os mais otimistas vislumbram, em curto tempo, a descoberta de novos testes  não-invasivos  que  permitirão  o  diagnóstico precoce do câncer da próstata.

Ao  planejar o tratamento dos casos de câncer da próstata, os especialistas levam  principalmente  em conta a extensão da doença. Pacientes com tumores restritos  à glândula são tratados com cirurgia (prostatectomia radical) ou com  radioterapia  (externa  ou braquiterapia) e, quando o tumor estende-se para  os  tecidos  vizinhos  ou  para  outros  órgãos, costuma-se indicar o tratamento  hormonal.  A  terapêutica  hormonal é também utilizada em casos mais  simples,  quando  se  deseja  poupar o paciente de procedimentos mais agressivos.  Felizmente,  a  maior  conscientização  dos  homens (e de suas esposas!!)  e a generalização dos exames preventivos produziram uma mudança auspiciosa  no perfil de apresentação da doença. Até 1980, cerca de 70% dos casos eram descobertos em fases avançadas e, portanto, de difícil controle. Atualmente,  de  70% a 90% dos pacientes atingidos têm o câncer confinado à glândula e, com isso, podem vislumbrar horizontes menos assombrosos.

Cerca  de  15%  dos  homens  com  câncer  de  próstata  apresentam um tumor indolente,  que  não  progride  e não precisa ser tratado. Indivíduos nessa situação  morrem  com  o  câncer,  mas  não pelo câncer, e os especialistas dispõem  de recursos para reconhecer tais casos. Informados desse fenômeno, muitos  pacientes  rejeitam o tratamento curativo do câncer da próstata, e, embora essa opção não seja totalmente descabida, ela carrega riscos que não são  desprezíveis.  Na  Suécia,  cerca  de  35% dos pacientes com câncer da próstata  não  recebem  tratamento curativo e 56% deles morrem pela doença. Conversamente,  nos  Estados  Unidos  apenas  8%  dos  casos  deixam de ser tratados  e  nesse país apenas 29% dos pacientes atingidos vão a óbito pelo câncer.

Igualmente  complexa  é  a  discussão entre os especialistas sobre a melhor forma  de  tratar  os  casos  de  câncer  inicial da próstata. Cirurgiões e radioterapeutas  proclamam,  respectivamente,  que  a  cirurgia radical e a radioterapia  representam a forma mais eficiente de tratamento. Pedindo que fosse  levada  em  conta  minha  posição suspeita de cirurgião, gostaria de dizer que a maioria dos estudos a respeito indica que a cirurgia cura entre 15%  e  20%  a  mais  de  pacientes. Com uma pequena vantagem adicional: se houver  retorno da doença na região da próstata, um número significativo de pacientes submetidos à cirurgia livra-se novamente da doença com aplicações de radioterapia. O inverso não é verdadeiro, já que cirurgia é executada de forma  precária  após  a  falência da radioterapia. Provavelmente, por tais motivos  é  que  levantamento realizado nos Estados Unidos demonstrou que a maioria dos portadores de câncer da próstata opta pelo tratamento cirúrgico logo  após a descoberta da doença. Também explica os resultados da pesquisa publicada  em  2000 pela Universidade de Harvard. Quando inquiridos sobre o método  de tratamento que escolheriam para si próprios se fossem portadores de  câncer  da  próstata,  93%  dos  urologistas  dariam preferência para a cirurgia  radical e apenas 3% dos radioterapeutas optariam, de início, pela radioterapia.

As  discussões  sobre  a eficiência dessas modalidades de tratamento não se restringem  a  questões  puramente  numéricas.  Incluem,  também,  riscos e inconvenientes  que não podem ser desprezados. Impotência sexual, com perda das  ereções  penianas,  atinge  entre  15%  e  90% dos homens submetidos à cirurgia  e  cerca de 40% daqueles tratados com radioterapia. Esse processo resulta  da  lesão dos chamados nervos cavernosos, que transitam ao lado da próstata e podem ser danificados pela manipulação cirúrgica ou pelos feixes de radioterapia.

Incontinência  urinária,  ou incapacidade para conter a urina, ocorre em de 3% a 35% dos pacientes operados, índices que variam em razão da experiência da  equipe  cirúrgica. Finalmente, a radioterapia pode produzir queimaduras no  intestino  grosso,  no  ânus  e  na  bexiga, com grande desconforto aos pacientes.

Os  cirurgiões  têm  se  esmerado  na execução da prostatectomia radical, e dados  disponíveis mostram que a incidência de complicações pós-operatórias cai  em quase 50% quando o especialista realiza mais de 40 intervenções por ano.  Ademais,  nervos  removidos  da  perna  ou dos músculos do abdômen do próprio  doente  têm  sido  aplicados  na área cirúrgica para substituir os nervos  cavernosos  danificados  durante  a remoção da próstata. Resultados preliminares indicam a recuperação das ereções penianas em cerca de 50% dos pacientes,  que de outro modo teriam evoluído para impotência sexual após a cirurgia.  Os  radioterapeutas,  por  sua vez, aperfeiçoaram as técnicas de radioterapia,  introduzindo  o  método  conformado  e  de IMRT. Com isso, o tratamento tem sido feito com maior eficácia e menos complicações.

Apesar  desses  esforços, os homens atingidos pelo câncer da próstata ainda pagam  um  preço alto para se livrar do mal. Por isso, a ciência médica tem se   empenhado   para  identificar  meios  de  prevenir  a  doença  e  para diagnosticá-la nos seus primórdios, quando o tratamento é menos agressivo.

Esses   esforços,  embora  incipientes,  não  deixam  de  ser  alentadores. Proteínas  reconhecidas  por  siglas  enigmáticas  como uPM3, EPCA, AMACAR, PCADM-3  e  pro-PSA,  encontram-se  presentes  em  quantidades anormais nos portadores  de  câncer  da  próstata  e talvez permitam a descoberta do mal antes  de  ele  se tornar aparente. Um novo equipamento, que emite ondas de ultra-som  de alta freqüência (HIFU), está sendo desenvolvido para destruir tumores da próstata a partir de uma fonte localizada fora do organismo, sem exigir  nenhuma  intervenção  local.  Vacinas  que  estimulam o organismo a reagir  contra o câncer foram testadas com sucesso em animais e agora estão sendo  experimentadas em seres humanos. Uma dessas vacinas, que desencadeia um  ataque  imunológico contra as células que produzem o PSA, foi empregada em  dois estudos patrocinados pelo National Cancer Institute e pelo Eastern Cooperative  Oncology Group, dos Estados Unidos. Em, respectivamente, 58% e 78%   dos  pacientes  com  câncer  da  próstata  agressivo,  observou-se  a paralisação  da  doença,  que  insistia  em  progredir apesar do tratamento convencional.

Finalmente,  várias  estratégias  têm  sido  exploradas  com  o objetivo de impedir  o aparecimento do câncer da próstata. Além de ações com eficiência já  reconhecida,  como  a  ingestão de vitamina E, outros agentes vêm sendo investigados, incluindo o indol-3-carbinol, presente na couve, no repolho e no  brócolis,  os  análogos da vitamina D, como o RO 26-9114 e o EB-1089, a baicaleína,  isolada  em  ervas chinesas, os inibidores da 5 -redutase ou o resveratrol  e  a  quercetina,  presentes no vinho tinto. Essas medidas têm efeitos  ainda indefinidos, de modo que a busca disciplinada do diagnóstico precoce  da  doença  continua  sendo  ainda  a  melhor forma de preservar a existência dos homens.

Nesse  texto  fica  claro que em torno do câncer da próstata existem boas e más  notícias, números decifráveis e estatísticas emblemáticas. Mais do que isso,  em torno do câncer da próstata existem seres humanos inseguros com o porvir.  Com aflições exacerbadas pela incerteza dos tratamentos, que curam um  grande  número  de  pacientes  mas  podem  comprometer  profundamente a qualidade de vida desses indivíduos.

Nesse cenário povoado por dúvidas, tomam parte dois atores insubstituíveis: pacientes  e  seus médicos. Dos pacientes espera-se que exerçam seu direito de  opção,  aceitando  os  tratamentos  mais radicais e eficientes quando o desejo  é de estender a vida e métodos menos agressivos quando o sentimento é  de  expandir  a existência, no seu caráter multidimensional. Dos médicos espera-se  que, além de aliviar o sofrimento físico, recorram a três poções mágicas  de  efeitos  quase  sublimes:  ouvir sem julgar, expressar-se numa dimensão  superior  e  estar  continuamente  ao  lado  do  paciente. Enfim, postar-se como leal companheiro de viagem nessa incomparável experiência de viver.

_____________________________________________________________________________ Miguel Srougi, 58, médico, é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e autor do livro "Próstata: Isso É com Você".

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