Theresa Catharina de Góes Campos

 
De: REYNALDO FERREIRA
Enviada: sáb 31/12/2005 10:58
Assunto: Vida de Menina - filme de Helena Solberg
 
Repasso-lhes, amigos, comentário suscitado pelo filme "Vida de Menina", de Helena Solberg, baseado no livro "Minha Vida de Menina", de Helena Morley. FELIZ ANO NOVO, RDF
 

COISA DE GENTINHA

         A menina Helena Morley, emburrada, no fundo do quintal, porque não fora lembrada, como a prima rica, para representar Minas Gerais nas festas de 15 de novembro, comemorativas da proclamação da República, ao final do século XIX, ouve da avó, que fora acalentá-la, o seguinte conselho: Não se incomode, não, minha filha!...Essa coisa de república é de gentinha!...Seu avô era monarquista. Como Helena adorava a avó e preservava a memória do avô, enterrado na principal praça de Diamantina, prontamente ela se reanima e volta alegre às brincadeiras.

         O diálogo, reproduzido no filme de Helena Solberg, "Vida de Menina", baseado no livro “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley, força uma reflexão, nos dias atuais, de que realmente a avó de Helena estava coberta de razão, quando disse que república é coisa de gentinha. Pois ao início do século XXI, o que se constata é que as repúblicas estão todas em plena decadência, enquanto as monarquias experimentam períodos áureos, como a Espanha, que em meados do século XX, teve a sorte (ou a coragem) de procurar no passado a solução para o futuro, reinstalando a família real no poder.

 Outra coisa não se pode dizer das monarquias do Norte da Europa – inclusive a da Suécia, cuja rainha é brasileira -  que ostentam as maiores rendas per capita do mundo e, por isso, turistas brasileiros nem lá botam o pé. Até mesmo na Inglaterra, apesar de Tony Blair, o povo vive atualmente com pleno emprego nas melhores condições sociais, saudando seus monarcas, embora sejam eles os mais descontrolados da Europa.

         Quanto às repúblicas, pobres delas, como diria a avó de Helena, mergulham no autoritarismo para tentar conter a violência causada pelas desigualdades sociais, que se aprofundam cada vez mais. Sim, porque nas repúblicas, os governos são de grupos poderosos, sem que haja, para intermediar a força deles, a figura  do rei como defensor dos interesses do povo. Os EUA perderam a máscara de grande nação democrática com o golpe de estado perpetrado em 2000 – como se fora qualquer republiqueta sul-americana -  quando Al Gore, do Partido Democrata, recebeu 539.898 votos a mais do que George W. Bush, que apesar disso passou a ocupar a Casa Branca. O que se deu?

         O golpe começou – como explica Michael Moore, o melhor repórter da América – muito antes da embromação do dia das eleições de 2000. No verão de 1999, Katherine Harris, uma stupid white man honorária, que era tanto a co-presidente de campanha presidencial de George W. Bush como a secretária de Estado da Flórida responsável pelas eleições, pagou US$ 4 milhões à Database Technologies para rever as listas de eleitores da Flórida e remover o nome de qualquer um “suspeito” de ser um ex-criminoso. Fez isso com a bênção do governador da Flórida, irmão de George W, Jeb Bush – cuja esposa foi pega por funcionários da imigração, tentando contrabandear US$ 19 mil em jóias para dentro do país sem declarar e pagar impostos...por si só um crime. Mas ah, isto são os Estados Unidos. Não julgamos criminosos se eles são ricos o suficiente ou casados com um Bush no poder.

         A lei reza – prossegue Michael Moore – que ex-criminosos não podem votar na Flórida. E, infelizmente (embora acredite que o sistema de justiça da Flórida sempre foi irrepreensivelmente justo), isso significa que 31% de todos os negros da Flórida estão impedidos de votar porque têm um crime em sua folha de antecedentes. Harry e Bush sabiam que, ao remover os nomes dos ex-condenados das listas de eleitores, manteriam milhares de cidadão negros – que são democratas  em sua esmagadora maioria -  fora das cabines de votação.

         Para impor esse regime de gentinha, ainda como diria a avó de Helena Morley,  ao Iraque, o presidente dos EUA  mentiu ao mundo todo, com a ajuda de seu acólito imediato, o primeiro-ministro da Inglaterra, que a invasão àquele país se justificava pelo fato de Sadam Hussein  possuir um arsenal extremamente perigoso de armas de destruição em massa, algumas das quais, conforme advertia -  desacreditando relatórios em contrário da ONU -  poderiam ser disparadas em poucos minutos, ocasionando uma destruição pavorosa. E continuou mentindo, dizendo que o Iraque mantinha estreitas ligações com a organização terrorista Al-Quaeda e que, assim sendo, era co-responsável pela destruição do World Trade Center de Nova Iorque, ocorrida a 11 de setembro de 2001, como observou há pouco o dramaturgo Harold Pinter, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura no reino da Suécia.

         Mas as mazelas sociais daquela que já foi considerada como a grande nação do Norte se tornaram mais evidentes foi no decorrer deste semestre, que agora se encerra, durante os terríveis vendavais que arrasaram os estados do Sul absurdamente desassistidos pelo governo de Washington porque habitados, em sua grande maioria, por populações pobres de cor negra. A República de George Washington mostrou  sua face cruel, voltada então não mais só para os de fora, mas para os de dentro de seu território. A solidariedade às vítimas, por incrível que pareça, surgiu primeiro das nações vizinhas, consideradas como de fundo de quintal, tanto assim que fazia 160 anos que uma guarnição militar do México não atravessava a fronteira, o que acabou fazendo para salvar vidas em New Orleans e em várias outras cidades do Mississipi.

 Apesar disso, a Câmara dos Deputados dos EUA  acaba de aprovar  projeto de lei que autoriza a construção de  humilhante muro -  como aquele de Israel na fronteira de Gaza -  fronteiriço com o México para evitar o constante fluxo de imigrantes latinos –  inclusive brasileiros – para seu território, que já conta com população de 300 milhões de habitantes. É bom lembrar, por outro lado, que a maior parte dos soldados ditos “americanos”, que estão no Iraque, é constituída  de latinos, que lá correm risco de morrer para obter o título de cidadão dos EUA. Um deles, de origem mexicana, voltou do Iraque às vésperas do Natal, para receber o título sonhado, no dia de seu aniversário, com a licença, contudo, de passar apenas as festas de fim-de-ano com a família e, em seguida, partir para servir no Afeganistão. Será que ele volta para aproveitar o título?

E a França?  A República Francesa -  que a gente costuma visitar para tomar vinho, comer pêra, lembrar-se de Villon, Balzac, Stendhal, Flaubert, Verlaine, Proust e Camus e ver apenas o que restou da monarquia – aquela que orgulhosamente diz ser o país da liberté, égalité, fraternité, mandou Rousseau às favas este ano, decretando estado de emergência para conter a onda de vandalismos em quase todas suas grandes cidades, causada pela xenofobia, pela segregação racial, que a consome aos poucos.

 Se vivo fosse, Marcel Proust, abordado por mim, subindo as escadarias da Ópera de Paris, em companhia de seu pai e do Dr. Cottard, teria dito: Durante a minha vida já fui tantas vezes enganado pelas aparências que não quero mais fiar-me nelas. E ele teria razão porque a França, seu país, vive apenas de aparências. As entrevistas concedidas por jovens franceses, alijados do mercado de trabalho à causa da descendência árabe ou africana, divulgadas pela televisão, eram estarrecedoras. Por elas percebia-se principalmente que o país, que fora antigamente berço da cultura, tem hoje baixíssimo índice de aproveitamento educacional. Pobre França!...Ela olha para seus vizinhos do Norte, mas, arrogante, como qualquer jurista brasileiro, não admite seus erros.

Mas a Alemanha, vizinha da França, que também vive de aparências, enfrenta os mesmos problemas de racismo e segregação social, agravados com a unificação do país após a queda do muro de Berlim. Por isso, teme-se por lá, além do ressurgimento das idéias nazistas, que a prostituição cresça violentamente durante a Copa do Mundo. Por sua vez, a Itália, ao que se percebeu pelos filmes selecionados para o Festival de Veneza, vistos em Brasília, antes de serem lançados no mercado italiano, vive uma crise de identidade sem precedente sob o comando de Berlusconi, o segundo acólito de George W. Bush no ataque contra o Iraque. Os italianos enfrentam, da mesma forma que a França e a Alemanha, o problema da desigualdade social, entre o Norte – que se equipara aos países desenvolvidos – e o Sul, que se assemelha aos países sul-americanos. A diferença é que os italianos são mais solidários entre si que os franceses e os alemães. Para promover a integração do Norte com o sul, eles projetaram uma ponte magnífica para fazer a ligação da ilha da Sicília com o Continente, mas, ao que parece, por ser o projeto extremamente ambicioso, a Itália não teria recursos para levá-lo avante.

Mas o filme “Vida de Menina”, de Helena Solberg, que forçou toda essa reflexão sobre a atual decadência das repúblicas, é mais um exemplar de boa adaptação literária para o cinema, como o são “O Padre e a Moça”, de Joaquim Pedro de Andrade, “Menino de Engenho”, de Walter Lima Júnior e “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos. A diretora reconstitui, por meio de narrativa simples e poética, pontilhada pela música de Haendel, César Franck  e a modinha “É a ti flor do céu”, de Teodomiro Alves Pereira e Modesto Ferreira, preferida de JK, em arranjo de Wagner Tiso, a vida em Diamantina, ao final do século XIX, em plena decadência da extração de diamantes, onde a menina Helena, inspirada por suas leituras de Júlio Verne, começava a extrair de seus sonhos sua bela obra literária, só publicada, entretanto, em 1942.

Helena Solberg, que havia realizado antes um documentário sobre Carmen Miranda, sabe compor as cenas, tem bom conhecimento da linguagem dos planos cinematográficos, mas falta-lhe maior desenvoltura no uso de alguns recursos técnicos, como o do flaskback, o que não perturba, contudo, o bom desenvolvimento da narrativa. A fotografia, de Pedro Farkas, é de excelente qualidade. E a intérprete de Helena, atriz Ludmila Dayer, é uma grata e belíssima surpresa. Tem talento para jogar fora. Pena que o elenco não a acompanhe e seja tecnicamente tão desigual. O cinema brasileiro não se convenceu ainda da necessidade de exibir, nos créditos dos filmes, a figura do diretor de atores para, pelo menos, padronizar melhor as interpretações. É raro ver no nosso cinema um trabalho de preparação de atores como o que fez Fernando Meirelles em “Cidade de Deus”, outra excelente adaptação literária.

O filme de Solberg também não esclarece que Helena Morley é pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, nascida em Diamantina a 28 de agosto de 1880 e falecida no Rio de Janeiro a 20 de junho de 1970. Foi casada na realidade, não com o primo Leontino do filme, mas com Mário Augusto Caldeira Brant ( 1876 – 1968) político, jornalista, escritor e ex-presidente do Banco do Brasil. Vale a pena, portanto, ir ver “Vida de Menina”, de Helena Solberg – embora esteja sendo exibido em Brasília num só cinema e numa única sessão -  que nos faz mergulhar nas questões do nosso passado histórico para pelo menos nos fazer esquecer um pouco a realidade presente, da “gentinha” que tomou conta deste país, que apresentou este ano um crescimento pífio – 2,5% de PIB - , colocando-se na posição constrangedora de ser o penúltimo do Continente, só não pegando a lanterninha porque esta foi deixada ao Haiti, país mais pobre das Américas.

                                      REYNALDO DOMINGOS FERREIRA

BsB, 30 de dezembro de 2005
 

Jornalismo com ética e solidariedade.