Associação de Juízes lança campanha para banir o “juridiquês”
 
18:43 25/04
 
Darlan Alvarenga
 
Oficialmente, o que se fala e escreve nos tribunais brasileiros é a língua portuguesa. Mas para a maioria dos brasileiros soa mais como um dialeto, o chamado "juridiquês" - aquela linguagem recheada de termos pomposos, em latim ou português antigo, que parece existir para apenas fazer jus à jus à regra “Se pode complicar, para que facilitar?”.
 

Nas decisões e julgamentos, é comum o simples talão de cheque virar "cártula chéquica", o viúvo, "cônjuge supérstite", a denúncia (peça formal), "exordial acusatório", o juiz de primeira instância, alvazir, e assim por diante. Sem contar as expressões em latim como “data venia”, “periculum in mora” e “fumus boni iuris”.

 

Alguns casos beiram o cômico: “Está eivado de ilegalidade o recolhimento do increpado ao esgástulo público”, escreveu um juiz federal de Florianópolis. O significado da sentença, entretanto, nada mais era do que um reconhecimento de que se tratava de uma prisão ilegal.

 

Para a felicidade e compreensão geral daqueles que não são juízes, advogados ou promotores, textos rebuscados como este podem estar com os dias contados. Pela primeira vez, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) está lançando uma campanha nacional para promover a reeducação lingüística nos tribunais e estudar formas de tornar a Justiça mais acessível compreensível para o público leigo.

 

“A linguagem jurídica acaba afastando a sociedade do Poder Judiciário”, afirma Rodrigo Collaço, presidente da AMB. “Em muitos casos, sem a consulta de um advogado a pessoa lê a sentença e não consegue saber se ganhou ou perdeu”.

 

Os principais alvos da campanha serão os estudantes de direito. A partir do próximo semestre, a Associação promoverá palestras em faculdades para convencer os alunos de que a linguagem técnica e formal é importante — desde que não ultrapasse os limites do entendimento possível à maioria da sociedade.

 

“É preciso promover uma mudança cultural com o uso de uma linguagem, simples, direta, objetiva”, afirma Colaço. “Nos cursos de Direito já se tornou uma tradição adotar este tipo de linguagem e os alunos se sentem forçados a incorporar essa linguagem mais rebuscada”.

 

Também neste ano, a AMB pretende lançar uma cartilha para simplificar alguns termos desmistificar certas palavras e expressões utilizadas nos processos. “Pelo menos nas comunicações processuais e nas decisões, a linguagem precisa ser do entendimento de todos”, defende Collaço.

 

O passo seguinte será tentar simplificar a linguagem dos editais e comunicados dos tribunais destinados à sociedade.

 

Demonstração de erudição e poder

 

Em muitos casos, a linguagem rebuscada nada acrescenta ao dia-a-dia do Judiciário. Serve mais para o ego do autor ou então como demonstração de erudição do que ao seu objetivo maior: fazer Justiça.

 

O presidente do Superior Tribunal de Justila, ministro Edson Vidigal, compara o “juridiquês” ao latim em missa, acobertando um mistério que amplia a distância entre a fé e o religioso; do mesmo modo, entre o cidadão e a lei. Ou seja, o uso da linguagem rebuscada, incompreensível para a maioria, seria também uma maneira de demonstração de poder e de manutenção do monopólio do conhecimento.

 

O juiz federal de Brasília, Novély Vilanova, autor de "O que não se deve dizer", cita como exemplo disso o recurso de um advogado dirigido ao Superior Tribunal Militar: “O alcândor Conselho Especial de Justiça, na sua apostura irrepreensível, foi correto e acendrado  no seu decisório. É certo que o Ministério Público tem o seu lambel largo no exercício do poder de denunciar. Mas nenhum lambel o levaria a pouso cinéreo se houvesse acolitado o pronunciamento absolutório dos nobres alvazires”. Quem conseguir traduzir o texto acima ganho um diploma de “juridiquês”.

 

Para Vilanova, o rebuscamento da linguagem acaba contribuindo não só para o distanciamento entre sociedade e Poder Judiciário, mas também para a morosidade, pois é comum o advogado pedir esclarecimentos ao juiz, o que acaba por retardar o andamento do processo.

“Aqui no Brasil, as praxes viciosas, a linguagem complicada e a cultura burocrática são fatores de retardamento da prestação jurisdicional”, afirma. Segundo ele, entretanto, não são reformas legislativas que conseguirão mudar isso. “Só haverá mudanças quando houver uma nova consciência ou mentalidade de que a Justiça não pode mais conviver com isso”.

Pior é quando a linguagem rebuscada dificulta o entendimento entre os próprios magistrados. Exemplo notório foi a soltura de homem preso pelo assassinato do empresário Nelson Schincariol, em Itu (SP), após interpretação errada de uma decisão da Justiça. Num texto ambíguo, um desembargador do Tribunal de Justiça determinou a manutenção da prisão. O juiz estadual entendeu o contrário e libertou o suspeito.

 

Em certa altura, o despacho dizia estar “denegada a pretensão formulada na sustentação oral, de concessão de ordem de habeas corpus, de ofício, deferindo liberdade provisória ao paciente...”. A vírgula depois de “ofício” permitiu ao juiz entender que o habeas corpus era negado, mas a liberdade provisória concedida, o que passava longe da intenção do desembargador.

 

Para a AMB é preciso diferenciar os termos técnicos da linguagem rebuscada. Segundo Collaço, um ou outro termo técnico ou em latim, ainda que não seja compreendido por todos, tem a vantagem de fixar um sentido preciso para a palavra.

 

"Uma certa dose de linguagem técnica é indispensável. O que queremos banir é o excesso. Tudo aquilo que torna o texto incompreensível e que pode ser substituído por outra palavra mais objetiva", conclui.

 

DICIONÁRIO DE "JURIDIQUÊS"

 

Autarquia ancilar: Instituto Nacional de Previdência Social

Cártula chéquica: folha de talão de cheque

Com espeque no artigo, com supedâneo no artigo: com base no artigo

Espórtula: gorjeta, donativos

Digesto obreiro: Consolidação das Leis do Trabalho

Diploma provisório: medida provisória

Ergástulo público: cadeia

Exordial acusatória, peça increpatória: denúncia

O autor está eivado de razão: com inteira razão (eivado significa contaminado, bichado, infectado)

Peça incoativa, petição de intróito, peça exordial, peça vestibular: petição inicial
"Bill of mandamus" ou remédio heróico: mandado de segurança

Pretório Excelso, Excelso Sodalício, ou Egrégio Pretório Supremo: Supremo Tribunal Federal

Vistor ou "expert": perito
Cônjuge sobrevivente ou consorte supérstite: "viúvo"

Alvazir: juiz de primeira instância

Testigo: testemunha

Cônjuge virago: a mulher do varão (do latim vir, isto é, homem)

Caderno indiciário: inquérito policial

  

 

ENTENDA O QUE SIGNIFICA 

ACÓRDÃO: texto que contém a decisão final de um tribunal sobre um tema específico.

CIRCUNSCRIÇÃO: é a divisão que delimita a área de atuação de um tribunal ou de uma vara de Justiça.

JURISPRUDÊNCIA: As decisões dos tribunais servem de modelo e orientam casos semelhantes. O conjunto delas é a jurisprudência, que não chega a ser uma ordem ou conselho a ser seguido obrigatoriamente, mas é usada pelos juízes nos julgamentos de questões que se repetem.

COMUTAÇÃO DA PENA: é a troca de uma condenação mais grave por uma mais leve.

DOLO: no direito penal, é a vontade de praticar um crime. No direito civil, é a intenção de prejudicar alguém.

EMENTA: resumo de lei ou decisão judicial. Normalmente, aparece no começo do documento como um enunciado.

HÁBEAS-CORPUS: benefício que se pode conseguir na Justiça para impedir ou cancelar uma ordem de prisão.

MANDADO DE SEGURANÇA: benefício que se pode conseguir para impedir ou cancelar a ameaça de algum direito diferente do de ir e vir. O mandado de segurança protege o interesse pessoal de quem sofrer a violação. O mandado de segurança pode ser individual ou coletivo, dependendo de quem forem os titulares dos direitos ofendidos.

LIMINAR: é uma decisão provisória, concedida por juiz ou tribunal, para evitar que quem pede o benefício seja prejudicado pela demora no julgamento de um processo.

DATA VENIA: expressão do latim usada como forma de se desculpar antes de dizer que discorda da tese de outro juiz.

PERICULUM IN MORA: do latim, significa que, se a decisão demorar, o julgamento da ação ficará sem sentido ou correrá o risco de ineficácia

FUMUS BONI IURIS: quando o fundamento da ação é considerado relevante e quando se constata a plausibilidade do direito alegado

CAPUT: usado para designar o enunciado do artigo de uma legislação. Equivalente a cabeça.

SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO: é a decisão judicial definitiva, que não pode ser contestada por recursos.

VISTA: os juízes podem interromper uma votação em julgamento pedindo vista do processo. Significa que querem examinar o caso antes de votar.

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